24.6.08

Conselhos gratuitos a uma certa esquerda – fragmentos de uma heterodoxia política


Ao que vou: não, não me passei para uma das esquerdas. Longe disso. Nem sequer advogado de defesa de qualquer das esquerdas que povoam a paisagem política caseira. E estou certo que se os mentores e apaniguados das esquerdas soubessem onde me situo dispensariam conselhos – até os gratuitos que aqui vou deixar. Mas deixo-os à mesma. Entendam-se estas palavras como um ensaio à maneira dos politólogos, entrando fundo numa heterodoxia que pode confundir os sacerdotes de algumas esquerdas mais alternativas, pois estão convencidos que detêm o lacre da heterodoxia política. Sirvo-me, como defesa de argumento, das teorias relativistas de que são cultores: por entre o convencimento das causas e dos argumentos que propagam, os conselhos grátis são a sua heterodoxia.

Foi um frémito que tomou conta de mim, este de aconselhar algumas esquerdas ávidas de um frentismo esquerdista nas próximas eleições. Há movimentos, espontâneos ou não, nem interessa, um clamor de união do que é desunido por definição: as muitas esquerdas domésticas. Hoje, André Freire faz a síntese magistral do argumentário do frentismo de esquerdas. O contexto é a antecipação das próximas eleições legislativas (2009) e dos ventos não bonançosos para a repetição da maioria absoluta dos socialistas.

André Freire compraz-se com o cenário, até para penalizar a deriva “neoliberal” dos socialistas que, no dizer de certos gurus da extrema-esquerda, não honram a ideologia que apenas embeleza o nome daquele partido. E como de repente surgiu do nada o rumor do bloco central (Sócrates e Manuela Ferreira Leite podiam sem problema partilhar a mesa do poder), o imperativo de aliança soou alto entre as hostes que se situam nas esquerdas. Para evitar o bloco central (concordo: seria sintoma de gangrena política, a inclinação perante todos os conformismos). E para empurrar o PS para a sua clientela sociologicamente inata, que se situa mais à esquerda. Seria a receita para extirpar o vírus “neoliberal” que, na maneira de ver destas esquerdas, se apoderou do actual governo.

Eu que estou de fora, fico perplexo quando vejo esquerdistas tratarem “a esquerda” no singular. É certo que, no título do artigo, André Freire faz alusão à “esquerda plural”. Mas esta pluralidade é mais heterogeneidade, e tanta que não se antecipa como seja possível meter no mesmo saco o PS, o PCP e o BE. De acordo com o politólogo, nesta altura a coligação só tem condições para incluir o PS e o BE. Seria um saco de gatos, mesmo correndo o risco de adivinhação. André Freire socorre-se das palavras de José Carlos Vasconcelos para sugerir os ingredientes certos para o cozinhado: “humildade democrática” e “vontade política”, cabendo ao PS “fazer significativas cedências aos pequenos [partidos]” e a estes que tivessem o discernimento de, “dada a sua dimensão, não [poderem] (…) determinar as grandes linhas de força do programa de governo”. A quadratura do círculo, portanto.

O sonho de André Freire esbarra na realidade: o PS não é Manuel Alegre, é um partido emparelhado com o poder. Para se manter no poder, deve, como bem diagnostica, “governar ‘no centro do centro’, (…) captando eleitores ao PSD”. Estes eleitores são o fermento do insalubre e acomodatício bloco central. E são o factor chave das eleições, a báscula da alternância entre os dois partidos. A realidade que contraria o wishful thinking de um frentismo de esquerda é esta: muitos desses eleitores, pragmáticos e conservadores como são, fogem de radicalismos como o diabo da cruz. Por mais que o BE se esforce por transpirar seriedade, está longe de convencer aquele eleitorado pragmático e conservador.

Se o PS se deixasse seduzir pela ideia do frentismo, muitos eleitores do centrão refugiar-se-iam no PSD. Penalizavam a soberba do PS, na sua deriva radicalista. Eles são o paredão que impede o PS de se enamorar mais à esquerda. A matemática remataria: a coligação às esquerdas desprovida dos preciosos votos daqueles eleitores fulcrais. E o PSD aumentaria a votação, porventura sem que a sua liderança (qualquer que seja) tivesse que apresentar um prometedor desempenho para (re)capturar os eleitores que fugiram para premiar o PS com a maioria absoluta existente. Desconheço (e pouco me importo) se estes cálculos eleitorais são a explicação para o (pretenso) tabu do primeiro-ministro. Que o deve atormentar, deixando-o sem saber para onde se virar, coitado.

Às esquerdas, o conselho: como o frentismo pertence ao onírico, sobram as listas separadas. Se será opção fratricida, o próximo ano o dirá. Por mais que os desejos dos frentistas ecoem em palavras empenhadas, quem acredita que a donzela que frequenta os salões da alta sociedade, tão habituada às mordomias, aceite matrimónio com o desgrenhado e estouvado das causas fracturantes?

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