4.6.08

Matinais mistérios


A embocadura da manhã desperta numa luz baça. Uma luz que se mistura com as camadas de névoa que se entrelaçam, criando vários anéis numa policromia de luzes que enfeitiça, como se fosse a lava já não incandescente sedimentada ladeira abaixo. O silêncio das ausências casa-se com a magia da primeira luz do dia. Não há melhor maneira de despedir do sono nocturno: contemplar o feixe de luzes que se esgota nuns instantes pelo romper da alvorada.

O crepúsculo esconde os seus mistérios. O seu lado encantador só enquanto os mistérios se encerrarem à revelação. O observador que os contempla estaciona diante dessa luz, embevecido, anestesiado por ela. Recusa-se a furar os anéis de luz embaciada em demanda dos seus segredos. Por receio da revelação terçar uma tremenda decepção e nem então os mistérios matinais resguardarem a seiva que motiva para os longos dias anunciados pela madrugada que se levanta.

São minutos, escassos minutos, em que tudo se suspende no seu êxtase. As ruas desertas ajudam à sedução matinal. E quando a humidade atinge o seu zénite com a erupção da alvorada, tudo se conjuga num fantástico quadro que se revela. O amplexo de sensações convoca um promontório onde muita paisagem desfile diante da vista. Ao longe a luz esbate-se, como se o ténue fio do horizonte se fundisse com os montes disformes. A separar o distante horizonte, os vales numa cadência irregular. Os montes descem, vertiginosos, em direcção às águas remansosas dos regatos onde os vales terminam em seus leitos. Línguas de nevoeiro escondem o fio de água, alimentam-se nestes caudais que escorrem com a lentidão primaveril das chuvas já escassas. Assim que os olhos fitam o longínquo firmamento, percebem a mescla de névoas que se acumulam no ar, sucessivas camadas com espessuras diferentes, a policromia das névoas. Entrada a manhã dia fora e o sol trepando a caminho do céu, o calor dissolve a humidade matinal. A espessura das névoas desfaz-se em nada, perdendo o rasto à luz embaciada. Agora apenas o lugar à luz tão nítida tornada clara pelo solarengo dia que se compôs.

Junto ao rio os mistérios da manhã adensam-se na espessura do nevoeiro embrulhado nas águas. Por momentos, a visão tolda-se na escuridão da densa névoa que se alimenta no caudal. Há dias em que a persistência do nevoeiro entra pela manhã fora, só ali nas margens do rio. Um túnel simétrico que esconde as águas fluviais dos olhos de quem por lá passa. Nos outros dias a osmose entre as imperceptíveis gotículas e o leito do rio consome-se quando a madrugada terminal se anuncia, cedendo a passagem à manhã que se faz alta. Uma transfiguração que apetece retratar numa sequência de diapositivos, só para admirar as cambiantes à medida que a baça luz se esbate na passagem de testemunho aos poderosos raios do sol que tomou conta do firmamento.

Uma força indomável arremete na admiração matinal. Os passos ténues do dilúculo são a vã expressão do tempo que se retarda. A capitulação perante a pletora de sensações que invadem o espírito, convocando a purificação dos sentidos, a purificação do pensamento. O alvor empresta magia à própria existência. É enquanto dura a alvorada, enquanto a coreografia de luzes embaciadas tergiversa no seu enigma, que chega o nutriente maior para o sempre demorado dia. A ambição maior é que perdurem como mistérios encerrados à decifração. Ou perdem o seu encantamento e nem então a alvorada deixará um rasto perfumado que é a consolação para o dia demorado que está à espera.

As sucessivas camadas de névoa suspensas no ar insinuam os segredos, o alimento da imaginação que frutifica o dia. Ingrediente supremo dos dias altos, plenos, aqueles dias que deixam, no seu restolho, o travo adocicado da vida que apetece sagrar.

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