10.6.08

Vaidade de casta (togas e tudo)


Togas outra vez. Diferentes togas. Já não as togas que investem os magistrados na suprema condição de órgão de soberania. Outras togas, de outras vaidades e outras solenidades. Um sinal de casta. A aclamação de uma elite – pois só as elites têm direito a sacralizar a pertença através de sinais que ostentem a condição. E uma soberba indisfarçável. De braço dado com um vetusto, ancestral código imagético, que se pavoneia diante dos comuns mortais convidados a assistir ao cortejo onde se passeiam as muitas vaidades individuais entronizadas na toga vestida.

Não consigo deixar de olhar para os actores envaidecidos do alto das suas togas e ver no quadro umas pinceladas medievais. As pesadas togas carregam consigo o iniludível lastro da sabedoria. Os panos espessos são o leito onde repousa a douta ciência dos que carregam as pesadas togas. São panos negros, contudo. O escurecido tecido deixa alguma perplexidade a esvoaçar: será tanto negrume a lente desfocada que esconde putativos saberes apenas? Lugar à simbologia tão adorada pelos adoradores do ritual: a transparência dos saberes porventura convocaria panos claros, não os escuros e pesados tecidos de que são feitas as togas.

Dizem que os ritos são o penhor do enorme lastro que vem de trás, dos antepassados. Um lugar ideal para testemunhar o legado de que é feita a substância do que somos hoje. São sinais necessários, uma codificação que traz consigo os fragmentos da socialização de um grupo. As pertenças convocam identificação. A identificação feita pelo vestuário que se traja, porte exclusivo dos que conseguiram escalar a ladeira e triunfar no púlpito onde só as castas ascendem. A par com as vaidades individuais que se consomem num fátuo fogo, o radioso espectáculo de se fazerem passear cobertos pela toga que afiança estatuto. Para alguns, a exibição da toga é o zénite de um trajecto pessoal onde sacrifícios e dificuldades pontuaram a escalada até ao púlpito tão desejado. Desconfio que, para outros, a ostentação da toga aplaca tormentos interiores de consciência, ainda incrédulos como conseguiram franquear as portadas da elite.

Não deixa de ser um complexo de farda. Como tantos complexos de fardamento que enxameiam esta terra mesquinha. Uma exibição de autoridade, intelectual. Quando as elites saem à rua em celebração da sua pertença, passeando as togas em júbilo pessoal, precisam de audiência. Os que ladeiam o cortejo são o rebanho necessário para aplaudir a magnificência dos entronizados na toga. Do alto do seu presumido pedestal, olham com sobranceria para a turba que é devedora de genuflexões à grandeza da casta. E assim exibem a prestimosa toga, vivificando a medieval confluência de desiguais estatutos. Então como hoje, um cortejo onde a aristocracia traja os sinais da sua superioridade. E sempre a necessidade de uma audiência, ou a expressão de superioridade da casta diluia-se em nada.

A ostentação da toga serve para incendiar vaidades pessoais. Vaidades que não passam de espúrias manifestações, a mesquinhez da pretensa altivez dos que almejam o fogaréu da toga. O laço irrecusável com o passado, na incapacidade de romper com os rituais de antanho, que não devem ser questionados sob pena de se negar uma identificação com a casta a que se pertence. O esplendor dos instantes em que a toga sai do armário é momento alto de uma carreira. Uma solenidade que entroniza a casta e os seus membros. E uma soberba que escorre de todos os passos que os confrades dão diante da turba, que não se cansa de adornar a cabeça em sinal de respeitosa homenagem. As togas vomitadas contra os que pertencem a uma escala inferior. Uma pose aristocrática que não perde o rasto aos lamentáveis vestígios herdados de tempos idos.

Vivem as togas com toda a intensidade possível nas ocasiões em que a solenidade as convoca. O feérico momento que dá vida a uma casta envaidecida de o ser. Não deixa de ser um lastro que se julgava pertencer aos livros de história: a toga como expressão da aristocrática identificação dos confrades. Tão sapientes que toda a sua ciência se passeia protegida pelos panos espessos, quentes e negros da toga. E, se calhar, só isso.

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