O ar irrespirável convidava ao desaparecimento. As cinzas que esvoaçavam deitavam-se no corpo, tingiam a epiderme com um pestilento cheiro aos incêndios florestais que eram o inferno para bombeiros e populações rurais.
Na longínqua cidade, onde os fogos não chegavam por carência de arvoredo, os incêndios acabavam por se fazer notar ao retardador. Era quando os ventos empurravam a nuvem de cinzas, tão poderosa que encobria o sol. Era como se fosse um nevoeiro, um nevoeiro abrasador, ocultando o sol numa penumbra de cinzas, o restolho das muitas árvores perecidas às mãos de um devastador fogo. Naqueles dias de calor insuportável, não bastava já os termómetros serem o forno onde os corpos se desfaziam num doentio suor; ainda havia a fuligem no ar, os flocos de uma neve pardacenta, uma neve quente que de vez em quando pousava na pele. E não bastava o ar irrespirável, as cinzas que se insinuavam em redor penetrando nas vias respiratórias, a respiração arfante doída no ar seco.
Eram dias de calor paradoxalmente escuros. Em vez dos dias soalheiros, companhia habitual dos abrasadores dias estivais, o sol enegrecido. Parecia que o sol carpia as lágrimas de um viúvo, como se estivesse a lamentar a perda de um ente querido. O sol tingido de negro, uma tímida amostra do refulgente astro dominante. Subitamente, perdera a sua indomável força, só uma imagem empalidecida do que era. Do tão alto céu onde o sol se resguarda, apenas uns lampejos de luz. Depurados pela espessa nuvem das cinzas onde árvores a eito se teciam em seu túmulo. A luz embaciada, espreitando entre a densa nuvem de cinzas, era uma luz tristonha, uma luz que acabrunhava.
Eram dias que encerravam uma beleza paradoxal. Não era só a impressão inicial, os gorjeios repetidos que ecoavam nos ouvidos já cansados dessa melodia pastosa, tal como o suor que se misturava com as roupas. Não era só a falsa plúmbea tez que cobria os dias, das entranhas vomitando um fel violento – em toda a violência retratada na coreografia das línguas de fogo volteadas pelos golpes furiosos de vento. Aquela penumbra perene, em dias que pareciam não ter fim, escondia um encanto sublime. Descontava-se a tragédia dos fogos florestais, o desespero das gentes a verem pertences arruinados na visitação indesejada de um fogo. Entre as camadas sucessivas de nuvens de cinza que imperavam nos céus, esvoaçavam os fantasmas pessoais de toda a gente. E, contudo, eram as cinzas seu leito, lá de onde não conseguiam descer à terra. Uma garantia retemperadora: empurrados os fantasmas para o púlpito de cinzas, enquanto adejassem na densa nuvem escurecida andariam longe de supliciar quem os temesse. Os fantasmas, coagidos a serem as carpideiras do enlutado sol.
O encantamento descobria-se até na viuvez que emparedava o sol. Da incapaz luz que conseguia atirar, a viuvez era um grito lancinante pela desdita de uma terra incandescente. Um compungido choro pela terra com tantas feridas abertas, em carne viva, ensanguentada. O sol inquietantemente solidário com as muitas lágrimas vertidas pelas vítimas dos fogos, recolhido em seus aposentos numa voluntária contrição da sua energia. Sabia-se: o sol era tão poderoso que, se quisesse, perfurava a teimosa nuvem de cinzas que se demorava na atmosfera. O sol também sabia que o calor tórrido que era fermento dos incêndios dispensava a sua ajuda: os seus raios seriam nutriente preferencial de mais fogos, seria ele o fautor de mais desgraça enquanto os ventos marítimos não viessem por fim temperar o clima. E assim o sol se remeteu ao seu luto voluntário. O sol generoso. Numa contradição de si mesmo, contente com a sua viuvez temporária.
Este ano os incêndios estão atrasados neste apeadeiro em que se costumam demorar. Mas não tardam: não há ano em que o satânico fogo não amesende nas matas na combustão instantânea de milhares e milhares de árvores. O sol, em preparação para o seu inevitável luto.
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