Começou a época das corridas de cavalos em Ascot. Aquilo é mais conhecido pelo desfile de bizarros chapéus que as senhoras da artistocracia envergam, envaidecidas, do que pelo evento em si. Até parece que as corridas de cavalos são um acontecimento de suporte ao desfile de inventivos chapéus das madames.
A galhardia dos adereços que pousam nos cabelos, já de si objectos de aturadas intervenções de cabeleireiros, merece cuidada observação. Há ali matéria-prima abundante para os teóricos da criatividade, dos vários estalões de criatividade. Não tive oportunidade de mergulhar numa investigação nos meandros da chapelada que enfeita as corridas de cavalos em Ascot. Aposto que prosperou uma indústria de criadores de chapéus que só podem ser ostentados por senhoras que tragam consigo credenciais aristocráticas – pois que parecerá mal às senhoras da burguesia, já para não mencionar as da escumalha, oferecerem a moleirinha como poiso para aqueles abstrusos adereços. Dizia: uma elite de criadores de chapéus, uma ferranha competição entre “estilistas” do chapéu. E, aposto ainda, tais “estilistas” terão prósperas finanças, pois que o preço deve variar com a jactância dos chapéus.
A cada ano que passa, a imprensa faz eco do desfile de vaidades de braço dado com a bizarria. E a cada ano que passa, as aristocratas vergam-nos na incredulidade de chapéus cada vez mais esquisitos. A primeira reacção que se esboça, um riso de desdém. Porventura inflacionado pelo confessado preconceito pessoal a tudo o que ressoe a realeza mais o séquito que lhe serve de pajem. As cortesãs, tão supremas na sua altivez de casta e, contudo, tão expostas à ridicularia. Mas depois percebo que há ali um nobre acto – ou não estivéssemos a falar da nobreza, um estatuto ímpar, só ao alcance dos predestinados, estatuto quase divino: o nobre acto é a notável capacidade de encaixe de quem se oferece para um desfile público em que o absurdo e a patetice andam em compasso.
Costuma-se dizer: por decoro, evita-se, sempre que possível, resvalar para a pessoal condição de quem se abraça ao ridículo. Quem gosta, espontaneamente, de se dar ao escárnio alheio? Acontecem, às vezes, escorregadelas involuntárias que alimentam a troça dos outros. Essas não contam, por involuntários actos serem. Olho outro vez para o bulício de Ascot, com as senhoras da cortesia ostentando seus excêntricos chapéus que roubam protagonismo a quem o merece – os cavalos e os jockeys, por esta ou por invertida ordem, consoante os gostos. Aquelas aristocratas ficam a jeito para o escárnio da populaça. O desfile de chapéus estrambóticos tem algo de circense. Os adereços que aterram nos penteados elaborados das cortesãs são a fatiota de palhaço que traz a boa disposição aos espectadores.
Esta sede de protagonismo é uma injustiça. As enfeitadas madames absorvem as atenções e Ascot transforma-se, deixa de coincidir com o evento pensado por quem o concebeu. Quando as aristocratas chegam a Ascot e roubam o protagonismo a jockeys e cavalos, sinal dos tempos – dos tempos em que as atenções se viram para o acessório e passam ao lado do essencial. Ascot, como está popularizado, é uma fuga ao essencialismo. O que nos chega não são os resultados das corridas de cavalos, detalhe sem importância ao lado do cortejo de chapéus tão esquisitos das madames que escorrem vaidade e captam a atenção dos fotógrafos. A vitória do mundano. O enamoramento pelo mundano. Pobres os jockeys e os cavalos que competem em Ascot: deles não reza a história, ao lado da chapelada que se entronizou no altar da importância.
Não há laivo de crítica, ou de juízo moral, o que quer que seja. No império do livre arbítrio, num tempo em que vinga o mercado em que se encontra a oferta de conteúdos e quem os procura, quem se pode arrogar ao papel de sacerdote dos costumes alheios? O tão criticado hedonismo (pelos zeladores da moralidade) é a chave metódica para o desassombrado regaço oferecido a manifestações deste género.
Ascot e cortejos da vaidade aristocrática não me indispõem, antes pelo contrário: entreabrem as portas à pândega avantajada. E os majestosos membros da aristocracia, tão tolerantes (e será que disso dão conta?), fautores de um inesperado cenário circense. Ascot é um comprimido para a sanidade mental.
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