16.6.08

Os democratas sem fair play democrata. São mesmo democratas?


Havia um menino lá na escola, o dono da bola. Filho único e com os maus modos de uma educação de família recentemente abastada. Quando a equipa dele estava a perder, do menino caprichoso irrompia uma birra que terminava subitamente o jogo, pegando na bola – porque a bola era dele. Nunca teve a desfaçatez de exigir a revisão do resultado, que os golos da equipa adversária fossem apagados do passado. O mau humor e o mau perder apenas tinham o condão de pôr um fim abrupto ao jogo. Porque era o dono da bola.

Foi do que me lembrei ao testemunhar as muitas reacções desabridas de políticos europeus depois da maioria dos irlandeses ter reprovado, em referendo, o Tratado de Lisboa. Quais são as regras do jogo? Que um tratado como o Tratado de Lisboa, que revê as regras fundamentais da União Europeia, só pode ter vida própria depois de todos os países membros da União o ratificarem. Desta vez, para evitar percalços anteriores (a vitória do “não” na França e na Holanda, quando a Constituição da União Europeia aí foi a votos), só a Irlanda organizou um referendo. A isso estava obrigada pelas respectivas regras constitucionais. Os irlandeses reprovaram o Tratado de Lisboa. Houvesse fair play democrático e todos saberiam tirar as consequências: o Tratado de Lisboa com exéquias marcadas.

Em vez disso, já diversos líderes políticos Europa fora vieram avisar que o resultado desfavorável não interrompe o processo. Será que compreendem o atropelo às regras? E percebem o atentado aos valores democráticos de que se consideram guardiães supremos, até a lesão que infligem à União Europeia como entidade em contínuo desenvolvimento? As reacções mais audíveis vieram dos líderes da França e da Alemanha: sentenciaram que os países que ainda não ratificaram o Tratado de Lisboa devem prosseguir com a ratificação. Pegando na deixa, o presidente da Comissão Europeia subscreveu a ideia (a educação maoista deixa as suas marcas). Actores menores – como o timoneiro nacional e a excelência presidencial – deram para o mesmo peditório. Mandaria a lógica, e a simples aplicação das regras, que o “não” irlandês interrompesse o processo, que fosse a sentença de morte do Tratado de Lisboa.

Ao invés, as frouxas lideranças políticas europeias fazem tábua rasa das regras, reinterpretam-nas com desfaçatez, servem-se de argumentos implausíveis. Porque o resultado do referendo na Irlanda foi contrário à sua vontade. Não é isto a entorse maior à democracia? Que exemplo dão estas lideranças políticas aos cidadãos – a não ser um mau exemplo que as qualifica, lideranças franzinas, sem carisma, que não mobilizam as pessoas, a não ser para uma desconfiança metódica? Que moralidade têm para falarem do alto da cátedra de “exemplares democratas” quando denunciam atentados à democracia em países que manipulam resultados eleitorais, se eles ignoram o resultado de um referendo? Como podem ser a caução do Estado de direito, esteio das democracias liberais, se são os primeiros a passar uma esponja nas regras que menos lhes convêm?

No cardápio de argumentos – diria: putativos argumentos – para ignorar os resultados do referendo irlandês e assim salvar o Tratado de Lisboa, há de tudo um pouco. O mais patético é o argumento dos números: dizem que três milhões de irlandeses não podem contrariar a vontade de quinhentos milhões de europeus, insinuando que os primeiros impedem a vontade dos segundos que seria, julga-se, abraçar o Tratado de Lisboa. Há aqui um tremendo erro de perspectiva: quem pode garantir que essa é a vontade dos quinhentos milhões de europeus se eles não se puderam pronunciar como aconteceu com os irlandeses? Há quem imponha um novo referendo na Irlanda (a marosca tem precedentes: uma vez na Dinamarca, salvando o Tratado de Maastricht, e outra na Irlanda, salvando o Tratado de Nice), até que pelo cansaço e pela coacção psicológica os irlandeses “votem certo”. Outros, mais desesperados, propõem a aplicação de uma regra do Tratado de Lisboa: quando dois terços dos países tiverem ratificado uma revisão dos tratados, o Conselho Europeu pode tomar medidas, insinuando que a revisão do tratado pode produzir efeitos mesmo sem todos os países o terem ratificado. O desespero, ou os maus fígados da derrota, dão o mote à cegueira: essa regra pertence a um tratado (o de Lisboa) que ainda não entrou em vigor. As regras do futuro só se podem aplicar no futuro, nunca para trás. Para culminar a sucessão de reacções despropositadas, já até se sugeriu que a Irlanda saísse da União Europeia, o que não tem qualquer cabimento.

Falta aqui um importante registo de interesses: houvesse referendo caseiro ao Tratado de Lisboa, iria votar “sim” (apesar das várias insuficiências do tratado). Não fiquei contente com o resultado do referendo na Irlanda. Fiquei ainda mais descontente com a cabeça perdida dos líderes políticos no rescaldo do referendo. Típica do menino caprichoso que, vendo as coisas correr mal para a sua equipa, retira a bola e acaba com o jogo. É a confirmação de que a Europa vai mal com estas lideranças políticas de fraco calibre e de má têmpera democrática. Lamenta-se: porque cada vez mais se percebe que na activação da democracia a prática dos responsáveis se distancia da retórica. E que, com isso, estão a desbaratar o potencial de um projecto tão belo como o que nos trouxe até hoje a União Europeia.

Sobra um paradoxo: as pessoas, Europa fora, em crescente insatisfação com a marcha secreta da União Europeia, sem lhes ser dada a palavra. As mesmas pessoas que continuam a alimentar a permanência no poder dos partidos que caucionam a construção da Europa nas costas dos cidadãos.

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