Já nem se interessava. Nada havia que o ferisse em seu corpo inanimado. Parecia que se tinha enraizado no solo, a meio caminho entre carne e vegetação. Da sua tão alta tristeza, alimentava uma nostalgia pueril. Uma nostalgia que se despedaçava, fragorosa, em seu peito. Como o seu peito estivesse aberto a todas as balas disparadas em sua direcção. É que nem dor sentia. O corpo, inanimado, no estertor não percebido da nostalgia que julgava terapêutica. Quando era só um pedaço fétido que apodrecia o corpo.
Não interessava por onde andasse. Os lugares perderam a sua identidade. Eram todos iguais, como se as casas e os jardins e as ruas, as pessoas, fossem todos um indiferenciado deserto. Parecia imerso numa agoniante anestesia. Da nostalgia incendiada pela amargura dos dias presentes. E não percebia o abismo profundo, o abismo de onde já não havia saída, o alçapão desvelado pela traiçoeira nostalgia. Pensara que era o refúgio da melancolia que viera até si – primeiro como sintoma sublime, quase uma névoa fina, mas depois tomando conta do corpo em toda a sua dimensão. Julgara que a nostalgia era o refúgio que daria conta da angustiante melancolia que o consumia. Não demorara muito tempo a discernir que pela nostalgia mergulhara num precipício doentio. E piorara.
As palavras entoadas já não interessavam. Nem os idiomas, todos iguais num amplexo desbotado de palavras que perderam significado. Já não palavras inteligíveis, apenas um amontoado de lúgubres sons, grunhidos animalescos. E quando até a sinfonia de palavras perdera encanto, anotara o sintoma do mal maior. Na sua ininteligibilidade, as frases seguidas eram punhais cravados nos ouvidos, uma estridência insuportável. Em vez de melodiosas composições, nem os poemas soavam senão a sons crus que, na sua ambivalência, semeavam as areais áridas de mais outro deserto.
E até a inanição deixara de interessar. Ao início, preocupara-se. Desgostoso, já nada o motivara. As coisas, umas atrás das outras, diluíram-se na sua vacuidade. Os acordes da vida despertavam ocos, pela manhã. E nem as insónias que entravam pela madrugada eram entrega para coisas diferentes, que viessem ocupar o lugar daquelas que haviam perdido o seu trono. Já só um terrível nada. A dolorosa melancolia arvorada tão alta no mastro que o esmagava na sua pequenez.
O que sobrava? Se até à perplexidade perdera rasto. Às dores, insensível. Dera conta do seu comatoso estado, o corpo inanimado perante o mundo que não cessava de desfilar diante dos seus teimosos abertos olhos. Descobrira que na nostalgia haveria de residir a vacina. Em vez de se doer com as dores do presente, um refúgio regenerativo nas silenciosas recordações de tempos idos. E apenas nas que trouxessem gratificações, não nas tristes memórias que deixaram um rasto pardacento em páginas empoeiradas que não queria outra vez abertas.
Só que percebera que a nostalgia não era o esconderijo da melancolia aflitiva que se estalava em sua boca. A deriva pelas memórias não era poço sem fundo. E por mais vida que tivesse vivido, por mais que se esforçasse em simular repetições das agradáveis recordações, elas não eram um recurso ilimitado. O que amontoava a insatisfação era o engodo da nostalgia, uma astuciosa demissão dos tempos presentes para fossilizar a tão dolorosa melancolia. Um truque de ilusionismo, mas isso só – ilusionismo, um torpor macilento, até estar consumado o corpo em si inanimado. Não havia cura que fosse melhor que a maleita. Quando deu conta, estava mesmo na medula do labirinto enigmático onde todas as ambiguidades eram manancial de outras ambiguidades ainda maiores.
Por nada se interessava. Anestesiado, era assim que queria oferecer-se ao mundo que era o seu palco. E as pontes que se teciam, da melancolia para a nostalgia que se condensava em mais melancolia, o novelo interminável da indiferença.
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