Peregrinação pela lusitanidade transviada: é verbo fácil, o dos estrangeiros – artistas, sobretudo – que nos visitam e ficam encantados com as gentes e as terras. Será porque ficam apenas com uma perspectiva muito temporária?
Num programa qualquer, passa um músico desconhecido excitado com as virtudes nativas. Desconfio que havia ali muito álcool a apoderar-se do raciocínio do artista. Não pelos elogios fáceis que ia emprestando ao discurso, mas pela excitação febril com que o fazia. Era tudo um mar de rosas, a encher de orgulho os lusitanos que o ouvissem naquele instante: o tempo maravilhoso, a comida maravilhosa, o vinho maravilhoso, as paisagens maravilhosas, as mulheres maravilhosas. Uma maravilha de país.
Nós, no espartilho da esquizofrenia idiossincrática, embevecidos com a capacidade dos outros para aquilo que em nós é incapacidade genética. Eles, no elogio rasgado à terra que visitam, as promessas de regresso em breve para levar mais um pouco da portugalidade emoldurada nas recordações. Alguns até projectam vir para cá viver, tanto o enamoramento que os possui. E eis que a nossa esquizofrenia se revela. De um lado, no contraste com o pessimismo militante sobre as virtudes nativas. É congénito: quando fazemos a introspecção sobre a lusitanidade que somos, à superfície irrompem as misérias, uma auto-crítica avassaladora. Em contrapartida, é o garbo que se manifesta quando estrangeiros tecem loas à terra em que vivemos. Afinal os outros gostam mais de nós do que nós mesmos. A auto-estima enxertada pelos que aterram do estrangeiro.
Não será motivo para tanto entusiasmo – aliás, um entusiasmo sem sentido, pois que é paradoxal a confluência de sentimentos quando fazemos auto-avaliação da portugalidade e nos excitamos com a excitação dos outros pela portugalidade que somos. Diria: visto à lupa dos nativos, o orgulhoso entusiasmo ao sermos enaltecidos pelos estrangeiros é um oxímoro. E o paradoxo segue o seu caminho: se, em vez de elogios à lusitana terra, lemos ou escutamos os outros a exercitar áspera crítica, revelando os defeitos que temos, uma súbita ofensa nacionalista trepa pelas veias incendiadas pelo despautério. Tão depressa passamos do pessimismo de todos os dias à defesa da honra que se confunde com uma reacção patrioteira: e tão depressa dedilhamos os vícios indígenas, como os negamos quando são os outros a pô-los na sua boca.
Ou seja: só nós podemos dizer mal do que somos e da terra que habitamos. É um exclusivo dos nativos. Os estrangeiros que chegam para conhecer a terra e as suas gentes só têm uma possibilidade: elogiar. É esse o comprimido milagroso que a espaços alimenta a auto-estima indígena. Será esta a razão para nos julgarmos descomprometida gente hospitaleira. Das poucas vezes que nos soltamos do pessimismo habitual para encontrar predicados que parecem perdidos durante tanto tempo, julgamo-nos um povo acolhedor, que sabe receber os estrangeiros que nos agraciam com a sua visita. Pudera: inebriados com a mudança de ares, os estrangeiros apaixonam-se pelo que é diferente do que estão habituados. E desmultiplicam-se em elogios. Com o ego inflacionado, retribuímos o panegírico através do atributo do acolhimento afectuoso. Não sei se poderei qualificar o atributo: oportunismo?
Há muito umbiguismo quando nos extasiamos diante dos elogios dos outros ao que somos e à terra que habitamos. Umbiguismo, porque há um traço típico de qualquer viajante: por onde quer que ande, ao descobrir terras novas e coisas diferentes das que está habituado, o viajante depressa se encanta com a diferença. Qualquer novo local visitado tem os seus encantos, ainda que os encantos sejam feitos de atributos que podem variar tanto – e de pessoa para pessoa. A auto-estima incendiada pelos arroubos dos estrangeiros pela lusitana terra perde sentido, porque todos os estrangeiros se enamoram pelas terras desconhecidas que visitam. Não é um exclusivo nosso, desenganem-se os pessimistas subitamente entusiasmados por saberem que há outros que gostam mais de nós.
Quanto aos outros que tanto se apaixonam pela portugalidade, que mergulham em palavrosos elogios, incapazes até de revelar um defeito que seja, esta interrogação: diriam o mesmo se a estadia fosse prolongada, diriam o mesmo se para cá viessem viver? O encanto é sempre temporário. Ao fim de um punhado de dias regressam às suas terras. Não chegam a ter tempo para carpir o cansaço nem os vícios da lusitanidade, que só teriam tempo para conhecer se mais tempo houvesse para a mapear.
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