Todas as montanhas e vales, todos os campos de flores, as intermináveis planícies: tudo se atravessa em porfiado estirão. A peregrinação inadiável, a perene peregrinação todos os dias percorrida. Um trajecto que separa o hoje de um devir incerto. Por muito que não se dê conta, a viagem que coincide com a existência; uma viagem que sabemos ter começado, só não sabemos onde e quando tem aprazado o seu remate.
Às vezes, a margem. Deter-se diante da margem. Os olhos fitam as águas, o obstáculo da outra margem. Depois de todos os vales e montanhas e campos e planícies, a margem interrompe o cortejo. Por vezes as pontes já edificadas autorizam a jornada, sem sequer se deter na margem. As pontes diluem as margens, que não chegam a esboçar-se embaraços. Piora o diagnóstico quando os pés se encaminham a um caudal de onde não se avista passadiço. E se diante dos olhos se espraia um leito caudaloso, os movimentos amordaçados pela inquietante dúvida: como alcançar a outra margem?
Do outro lado, prometido terreno para amaciar as angústias coleccionadas, ou talvez não. Como se todos os passos até àquela margem tivessem sido sofridos passos, os pés feridos na expressão da dolorosa conquista. O outro lado é o desconhecido. Na sua frente, ainda sem saber se lá consegue chegar, divaga o pensamento. Dir-se-ia, o pensamento em dilatórias manobras, só para adiar o momento em que a decisão deixa o limiar do adiável. Mas o pensamento elabora-se em múltiplas possibilidades. Interroga-se se quer passar para a outra margem. Como se o corpo estivesse repartido em dois hemisférios absolutamente iguais. Uma balança em que o fiel teimasse em não inclinar para um dos lados. O auge da indecisão.
O corpo cansado deita-se na margem. Contempla o outro lado, desconhecido. Cederá na atracção do desconhecido? Falará mais alto a prudência, desavinda dos passos em desconhecido terreno? E assim fica, preso ao pensamento indeciso, o corpo no êxtase da margem onde todos os adiamentos encontram seu altar. De nada vale esquivar-se das interrogações que se sucedem, numa alucinante sucessão que vai amontoando as dúvidas, o agitado pensamento que esbarra no corpo. A certa altura as encruzilhadas desmembram-se num labirinto enredado. O pensamento aprisionado nas suas teias. O complexo pensamento, apenas capaz de apostar consecutivas interrogações, mesmo quando aplaude o entusiasmo de uma resposta, mirífica resposta que apenas abre as janelas de mais perguntas.
Nisto, uma nesga de discernimento deixa entrar alguma luz para depurar a profusão de cores que tomou conta do pensamento. Todas as interrogações, metódicas interrogações, a válvula de escape onde a indecisão se faz rainha. Para evitar a deliberação que se impõe, ali diante da margem que não pode ser ancoradouro definitivo. Sedentarismo nenhum acalenta esse ancoradouro. Percebe-se então que o pensamento dividido em seus dois uniformes hemisférios mergulhou nas masmorras de si mesmo. Conveniente hermetismo dos hemisférios, pretexto para o adiamento de uma decisão: deixar aquela margem e passar para o outro lado?
O ardiloso pensamento instala a letargia. Tamanho caudal, por mais agitadas que vão as águas, apenas outro pretexto para impedir o outro lado. Aquela margem, o cómodo lugar onde os desafios são metidos dentro de uma cápsula, onde a inércia se apodera de tudo. Dizer que as águas contêm perigosos remoinhos que ameaçam tragar o corpo, sugá-lo para as profundezas onde se asfixia, é outra desculpa. A vontade ultrapassa todos os obstáculos que se ergam, mesmo os que aparentam ser difíceis de vergar em sua derrota. E se não forem os vórtices que se formam nas caudalosas águas, outra desculpa logo se perfila. Aí se consome a vontade; ou apenas a indecisão, a meias com a ausente coragem de desafiar o desconhecido.
A acontecer, há-de sempre ficar um travo amargo a conviver na boca: a ausente intrepidez, barreira definitiva ao que nunca se conseguiu chegar a conhecer. O outro lado, ali à frente da vista e, no entanto, apenas uma miragem. Por demissão de si mesmo. Por falta de coragem. Ou apenas na ausente vontade de mudar.
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