Será que os olhos, extasiados pelo deslumbramento de um local, anestesiados por expectativas, por relatos de outras pessoas, até pelos demorados encómios que se generalizaram, traem as sensações no regresso a um lugar? É como se o regresso o seja a um lugar diferente, ou que esse lugar tenha perdido o sortilégio do desconhecido, ao voltar à cidade exaltada. É como se, de repente, entre as duas visitas, a cidade se tivesse transformado e todos os pequenos detalhes que desgostam pesassem mais do que os lugares que inebriam os sentidos.
Pode ser que os momentâneos estados de alma turvem a análise. Que os olhos tragam um filtro que os distrai. E, contudo, já não noto aquele encantamento da outra vez. Até a luz parece diferente – e de ambas as vezes era um luminoso sol que me acolhera. As pedras das calçadas, as paredes gastas que encerram séculos de história, tudo parece ter-se perdido no significado já gasto da visita inaugural, da visita que dera a conhecer a cidade tão celebrada. Ou pode ser que caia o manto da ilusão sobre os olhos que se extasiam quando por fim lhes é dado a conhecer a cidade que era esperada há tanto tempo.
Assim é Roma, agora que a ela regresso. Já nem o infindável cortejo de monumentos, ou a traça de uma civilização a pulsar diante dos olhos, a misturar-se com o pulsar das veias de quem anda pelas pedras seculares que selam o troar da civilização que somos, ou a majestosa, esmagadora pose dos monumentos imperiais; nada isso desperta o encantamento que se apoderara da visita anterior.
É por isso que interrogo: se afinal o legado, cujas raízes aqui se encontram, explica o desencanto. A culpa, se importa determiná-la, foi dos romanos de tempos idos quando espalharam uma civilização, esta civilização, pela geografia da Europa? Ou foram as sucessivas gerações, pelo tempo fora, que estragaram o legado que receberam dos romanos? Seja qual for a resposta – em havendo uma – os traços da civilização aqui fundada permanecem vivos. Eis um exemplo que atraiçoa o legado do império romano: todo o direito que temos inspira-se na obra jurídica dos romanos (aprende-se numa maçuda disciplina logo no primeiro ano do curso). Quando se aponta o dedo aos juristas, e aos advogados em particular, pelos maiores dos males que campeiam, não se está a acusar, com toda a distância dos séculos, os romanos que nos deixaram este direito?
E é por isso que interrogo: se os olhos são atraiçoados pelos deleites a que vêm preparados. Constroem um mundo fantasioso, predispostos para o encantamento por causa de narrativas fantásticas, de imagens que retratam maravilhas da natureza, obras de arte emblemáticas, monumentos que remetem o visitante à sua pequenez diante do monumento que os esmaga. Quando se renova a visita a todos esses locais, é como se um vento gélido percorresse as entranhas e semeasse apenas desconforto. Tudo o que outrora fora encantamento era agora uma atroz vulgaridade.
As coisas têm muitas tonalidades, mesmo quando a uns olhos, num certo tempo, parecem estar engalanadas com as deslumbrantes cores do encantamento. O que os olhos fitam nunca é a imagem nua. Vem filtrada por estados de espírito, por predisposições que atraiçoam o olhar, incapaz de olhar além do véu que julga ser a essência das coisas. Parece que todas as coisas em todos os lugares apenas merecem ser visitadas uma vez. Ao menos guardam-se, dos lugares com merecimento, as primeiras imagens só compostas pelo encanto da visita inaugural. Nem que seja para dar alento ao altar das supremas fantasias.
Assim como assim, o tempo de uma vida é tão escasso para conhecer a vastidão do mundo. Tão escasso que retomar lugares conhecidos é desaproveitar tempo, o sempre tão escasso tempo. Contudo, há nisto um paradoxo. Pois se em todos os lugares, sobretudo nas grandes cidades, fica sempre mais por ver do que os olhos conseguem alcançar no escasso tempo da visita, às vezes é a boca que fica a pedir o regresso a esses lugares. Nem que seja para que os olhos percam a sua néscia máscara, mergulhados no frémito de imagens preconcebidas que semeiam um hipnótico estado de espírito nas visitas inaugurais.
Ao menos, que fosse para destruir o altar das supremas fantasias.
(Em Roma)
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