Há atitudes que são sublimes revelações de uma personalidade. É quando as carradas de verniz, daquele verniz laboriosamente densificado em sucessivas camadas, se estalam. E à mostra fica a real têmpera de personagens que são um embuste dos pés à cabeça. Labregos arrivistas vindos da província e que conseguem triunfar na selva da grande urbe. Por muito que queiram ocultar a labrega condição, por muito que se escondam detrás de aprumadas fatiotas de dispendiosos estilistas, por muito que queiram aparecer como "modernaços", toda uma têmpera à mostra quando se sentem acossados, incomodados por acontecimentos que não conseguem controlar e chamuscam a indelével imagem que são. E é só isso que a personagem em causa – o primeiro-ministro – consegue ser: uma oca imagem.
Não há semana que não se saiba de mais um pormenor delicioso que deixa a descoberto o labrego encapotado que se tenta esconder. Foi pateado quando entrou com meia hora de atraso numa ópera. Não demorou senão um par de horas até que o gabinete, diligente no controlo de danos à imagem de sua excelência, justificasse o atraso numa nota à imprensa. A culpa não tinha sido do imprescindível timoneiro – aliás nunca é, tão infalível a personagem. A culpa foi do primeiro-ministro de Cabo Verde, que se atrasou para um compromisso e, em efeito de cascata, fez demorar o impecável timoneiro na chegada à ópera.
O povo, o ingrato povo, devia engolir as vaias com que recebeu o senhor primeiro-ministro. Não se faz. Mesmo que o homem estivesse atrasado, o povo da cultura devia ter uma noção das prioridades. Governar a pátria é tarefa vultuosa. Às vezes as urgências atrasam os prescientes que nos safam de descaminhos maiores. Que interessa um singelo atraso de trinta minutos numa ópera? Assim como assim, não somos um povo estruturalmente atrasado?
O que me encanta é ver a pose de estadista do primeiro-ministro e a sua impaciência quando reclama contra os malvados da oposição que, acusa, não têm "sentido de Estado". E este sacudir a água do capote para cima do primeiro-ministro de Cabo Verde, o que é senão uma tremenda falta de sentido de Estado? É como se fosse um apatetado elefante em loja de porcelana, desastradamente a destruir as porcelanas à passagem das desajeitadas patorras. Imagino os muitos cabelos arrepiados no ministério dos negócios estrangeiros quando o gabinete de imagem da mais elevada excelência da pátria deu a conhecer o comunicado em que endossava o atraso para o colega de Cabo Verde. A isto se chama diplomacia em estado puro.
O timoneiro e quem o rodeia de perto são casos patológicos. Deviam ser deitados num divã e dissecados por um equipa de psicólogos e psiquiatras. É o timoneiro da pátria sempre que irrompe o labrego que há em si e lá se vai a feérica imagem chique. É o impressionante sociólogo Santos Silva quando se substitui à justiça ao proclamar que não há ministros indiciados em investigações de corrupção, redesenhando a separação de poderes e fazendo tábua rasa da, para os socialistas, tão querida revolução francesa. É o risível ministro da economia quando, em digressão pré-eleitoral, sentencia que em certos locais onde acabara de distribuir uns cheques o partido do governo de certeza chegará aos 80% dos votos. Ou quando diz, na bebedeira da sua burlesca figurinha, que essa gente votaria dez vezes na comandita de que faz parte.
Noutro dia, a propósito de outra escorregadela para o chinelo (a do Papa quando disse não ser o preservativo a solução par impedir o contágio da SIDA em África), houve um teólogo que reagiu assim: "já nem sei se hei-de rir ou se hei-de chorar". Faço minhas as suas palavras quando tropeço nos constantes episódios em que sua excelência o timoneiro se descai para o chinelo. Por estes dias, é a vontade de rir, e com sonoras gargalhadas, que tem vingado. Uma paródia ímpar, é no que isto está.
Sem comentários:
Enviar um comentário