De que serve a tristeza? De que serve definhar nas sombrias vielas onde o chão, escorregadio, atraiçoa os passos? De que serve teimar na penumbra que toma conta do horizonte? De que serve a ladainha da alma, os incontáveis lamentos com serventia para mergulhar o rosto numa fachada sorumbática?
Diante das dores da alma, impõe-se a negação das trivialidades que soam, estridentes, ao compasso do relógio que tinge o fétido dos dias actuais. Oxalá as dores se ausentassem nos sentidos que zelam, vigilantes, pelo teatro do mundo. Tomara que as coisas deixassem de ter os predicados enevoados que escondem o seu leito lamacento. Aqueles escombros onde tudo perece nas ruínas por onde silva o vento fugidio, o vento que soa à morte espalhada. De que serve pernoitar, noites a fio, nestas ruínas onde tudo repousa na suicida acalmia que arremete contra os sentidos decantados?
Talvez o segredo seja fazer de conta. Talvez a alienação, o bálsamo maior para subtrair aos escombros que aprisionam a um devir onde as bússolas se ausentaram. Deixariam de contar as asperezas do tempo, a mesquinhez das gentes, os actos que parecem tresloucados ao serem vistos no esconderijo da ingenuidade que se condói com o diário parto do mundo. De que serve arrastar o corpo entre corredores apertados, em lugares onde parece o ar faltar, lugares tão asfixiantes – de que serve tudo isto senão para aprisionar a existência à penumbra que sussurra, a penumbra que anestesia?
O mal é que a anestesia só finge tirar as dores. Mal por mal, porventura a alienação do que há. Em vez de embarcar na nau volumosa que traga as caudalosas águas, partir noutras demandas como se fosse desvairado astronauta à descoberta de galáxias por revelar. A arte está em saber procurar as galáxias desconhecidas. Depois, esquadrinhar o mapa que desembacia o caminho até às novas galáxias. Em lugar de teimar sempre pelos sítios esgotados no seu conhecimento, os sítios que apenas cavalgam na monotonia da rotina, arremeter pelas estradas jamais visitadas, por onde o imperativo de cada momento insinuasse.
De que servem todas as lágrimas, até as invisíveis, senão para a tremenda consumição da existência? De que serve chorar as dores de um vasto lugar que se compunge com a sua própria existência? O maior devaneio libertário, o maior devaneio do sancionado individualismo, é fugir das dores dos outros que são a sua própria consumição. Para descobrir as janelas por ora encerradas por onde destilam as cores garridas, onde os sorrisos perenes embelezam os lugares. As janelas de onde exalam os perfumes que dariam existência às divindades supostas. Aqueles lugares onde seria proibida a presença dos meirinhos das odiadas coisas deste lugar doentio.
Seria como se a vida estivesse em constante ebulição. Uma embriaguez de sempre, num festim de onde dizer adeus seria ultrajante. As palavras teriam, todas, o eco das melodias com a têmpera dos majestosos compositores. E a música, a temperar as palavras, a música seria a reinvenção da poesia. Todas as cores numa paleta generosa, as pinceladas desordenadas a erigir monumentos à arte. Tudo num delongado amplexo para recusar a mesquinhez, a mediocridade, a ignorância cultivada, as lágrimas a que somos empurrados como se escorregar para o limiar do precipício fosse a terapia para as consumições interiores. Já não haveria vielas esconsas, nem casas gastas tingidas pela humidade fétida, com velhas rezingonas à janela a espiar a vizinhança e a julgar os passeantes.
As cores e as palavras e as melodias em constante exaltação. Sem jornais ou televisões ou estações de rádio, o estertor da prisão onde vegetamos. Em seu lugar, um festim inadiável. Um festim perene, com as portas encerradas aos feitores das maldades que eram o pasto para a sombria existência. Sem fretes ao que remete para evitáveis dores. Sem concessões aos espartilhos dos medíocres que adoçam a existência com pílulas de ignorância e laivos de mesquinhez. Esses, que esboçam a espécie no que ela contém de pior, seriam banidos do perene festim da vida.
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