Todas as cidades têm os seus recantos emblemáticos. Todos esses lugares, que deles se diz serem "ex-líbris", resistem à cavalgada do tempo. Praças, monumentos, fontes. Em heróica resistência à erosão do tempo e dos elementos que o tempo passeia em alegre dança. Às vezes, os lugares emblemáticos são redesenhados no seu simbolismo. Há quem se consiga apropriar desses lugares, dando-lhes nova vida e novo significado. Reescrevem as tradições.
Chegou-me ao conhecimento que isso aconteceu com a romana Praça de Espanha e a sua escadaria tão carregada de um romantismo que certos recantos desta cidade carregam. Desde há alguns anos, o mundo da moda tomara conta da escadaria da Praça de Espanha. Com muitos e feéricos desfiles de moda, de preferência sob a batuta da noite, as escadas a servirem de pano de fundo para encantadoras velas repousando nos degraus enquanto as meninas e os meninos desciam, naquela pose escangalhada dos manequins de hoje, os degraus debruados com o muito néon da moda.
Na recente visita a Roma fui parar ao topo da escadaria e também fiz o percurso dos meninos e meninas consagrados no mundo da moda. Havia muita gente arrumada nos degraus a beber água, porventura num interstício das extenuantes caminhadas que dão a conhecer a cidade eterna. Ia descendo sem pressa quando conjuguei o que me contaram com o que começava a observar: algumas adolescentes embevecidas a olharem para as escadas, curiosamente todas de frente para a escadaria, fitando-a de baixo para cima. Boquiabertas. Esmagadas pelos sonhos de manequins que, nesses sonhos, eram elas mesmas. Se alguns peregrinam até ao Vaticano, do outro lado do rio Tevere, estas meninas mundanas pareciam desaguar na sua particular Meca com ponto cardeal na escadaria da Praça de Espanha.
Deixei-me ficar por ali a observar as muitas meninas, e já menos meninas, que ficavam inertes e esmagadas pelo peso simbólico da escadaria. Adivinho que se imaginavam manequins consagradas a desfilar escadaria abaixo sob o olhar de personagens que gravitam nesse particular universo, debaixo de uma torrente de flashes de numerosos fotógrafos ávidos de emoldurar as fatiotas supimpas de criativos estilistas e a pose asséptica e maldisposta das meninas e meninos contratados para vestir as fatiotas. Não condizia o ruborescer de êxtase das meninas ali empatadas nos seus sonhos de manequins com sonho passado para a tela: está na moda que os manequins enverguem inexpressivos rostos, os antípodas da felicidade que irradiava dos sonhos que fugiam dos olhos resplandecentes daquelas meninas.
Podia haver o impulso de censurar os costumes que tiveram força para se apropriar da escadaria da Praça de Espanha. Pelo contrário: a inércia dos conservadorismos é o diagnóstico das doenças terminais, a compulsiva letargia que toma conta da gente formatada para atribuir significados únicos aos lugares expressivos das cidades. Que interessa que a moda seja um desfile de futilidade se essa é apenas uma opinião, e irrelevante, a minha? Há sempre o aspecto cintilante a desempoeirar as nuvens negras que pousam quando a reescrita dos significados dos lugares traz algum desagrado. Alguém há-de encontrar matéria-prima para fugir ao estabelecido. Talvez que sociólogos, psicólogos e antropólogos tenham nos degraus da escadaria da Praça de Espanha abundante matéria-prima para desmultiplicar ciência. Só que então, em vez de se examinar o monumento observam-se comportamentos. Vem algum mal ao mundo se as pessoas tiverem mais importância do que as coisas?
Também desci a escadaria e nem por um momento me senti manequim – vade retro! Nisto, de repente, veio à lembrança uma namorada que dizia que eu podia ser manequim. A néscia! Ou estava cega, ou o tempo não chegou para me conhecer uns gramas que fossem. Poucas vezes me terei ofendido tanto como daquela vez.
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