5.3.09

À catanada


A espécie que somos não se cansa de ser exemplar em atrocidades que levam a perguntar se há gente possuída por uma ferocidade animalesca, gente a quem se podia interrogar se é humana? Ou, então, os azimutes estão todos errados. E a bestialidade é-nos congénita. O que estará errado é pregar os antípodas da violência. Pois há sempre alguém a mostrar que os limites da loucura ainda tinham mais um lado escondido. Alguém que, num acesso de insanidade, desliza para a barbárie que deixa os outros, porventura os ingénuos apenas, boquiabertos.


Primeiro tinha lido um relato detalhado do cerco a Nino Vieira e do que foi feito até o assassinarem. Já aí se leram as incríveis parangonas: o presidente da Guiné Bissau tinha sido morto à catanada. À noite, a jovem correspondente da RTP fez um roteiro circunstanciado do suplício de Nino Vieira. (Razão de ordem: não nutria simpatiza alguma pelo presidente guineense.) O primeiro impulso foi virar a cara àquela abjecção. Mas deixei-me continuar. A certa altura, fiquei na dúvida sobre o que seria mais macabro: se a forma selvática como o Nino Vieira foi tirado à vida, se a revisitação encenada pela jornalista, ao milímetro, para aparente gáudio de uma audiência sempre sequiosa de sangue.


Admito que há actos repugnantes aos quais não se deve virar a cara. A omissão branqueia a barbárie que envergonha a espécie humana (se a espécie humana não for, como parece confirmar-se, um ninho de víboras que não respeita o semelhante, mesmo quando o semelhante milita do outro lado da barricada). Calar a torpeza dos atropelos à dignidade das pessoas é ser-se cúmplice, por omissão, da vilania criminosa. Por admitir tudo isto, passar imagens que retratam a violência insuportável, quantas vezes a violência gratuita, de um homem a tirar a vida a outro homem, encerra a sua pedagogia. Só alimenta o voyeurismo dos que forem potenciais verdugos. Aos outros, terá o condão de exaltar metódica repugnância por estes actos que seriam a vergonha da espécie. Senti isto ao ver-me espectador enojado da mórbida descrição cheia de detalhes da autoria da correspondente na Guiné Bissau. Às vezes, é preciso ir ao fundo do baú e deixar vir ao de cima todas as excrescências.


Não quero saber se por aí andarem os pastores de um certo pensamento que a si reivindica o estatuto do politicamente correcto a protestar contra análises acusadas de etnocentrismo. Simpatizo com a abertura de espírito que condena as expressões gratuitas de etnocentrismo. Todavia, não consigo reprimir o sobressalto com o extremo barbarismo. É fácil aos cultores da suposta superioridade civilizacional do "ocidente" proclamarem, com uma pérfida superioridade moral, que isto não acontece nos países onde vivem. Esquecem-se do longo cortejo de crimes hediondos que todos os dias vem na espuma das notícias. Os crimes que acontecem debaixo do nariz destes encantados com a dita superioridade da civilização que são.


Mas também não compreendo o desprendimento com que lídimos pastores do etnocentrismo encaram estas abjectas mortes. Tribalismos, sublinham, para acentuar um contexto diferente que atenua a factura sórdida da sucessão de actos que culminou com decapitação à catanada. Que haja condescendência com a brutalidade gratuita por causa de diferentes costumes dos algozes, é algo que é superior a meu entendimento. Curiosamente, são estes pescadores das vanguardas que chamam a si a causa da igualdade. Em que ficamos? A benta igualdade é derrogada por imperativos da teoria etnocêntrica?


Pode um pessimista antropológico deixar de o ser ao ver o incessante cortejo de violência animalesca? Não me convencem os mais optimistas se disserem que estes são actos isolados, actos cometidos por gente doente, ou temporariamente endemoninhada, actos que não reproduzem a bondade da fatia mais numerosa da espécie que somos. Não vou ao fundo da quantificação, nem sei – e, para o efeito, nem conta para o que quer que seja – se somos mais os bondosos e adoradores da paz ou os maléficos personagens que envergonham a humanidade olhada pelo prisma lírico.


Enquanto houver um espécime, um espécime que seja, nem que seja uma minúscula gota num imenso oceano, a profanar a bondade da espécie, é porque a espécie está doente. Ou, porventura, a bondade inata não passa de um lirismo inconsequente.

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