Reportagem sobre os mais famosos chefes de cozinha. Um imenso reportório de excentricidades. Uma em destaque: um chefe foi de propósito a Espanha para degustar ostras cobertas por um, diz dele, majestosamente delicioso molho feito à base de terra. Não de uma terra qualquer. Para ter os predicados exigidos, só pode ser colhida num sítio em segredo na Catalunha. Um molho à base de terra!
Como os segredos gastronómicos me encantam, sou sensível às reinvenções culinárias, à mistura de ingredientes que, para os parâmetros tradicionais, nunca se julgariam casáveis. Gosto de ler sobre a "cozinha de autor" – sem exagerar nos panegíricos, como alguns gourmets o fazem, ao considerar que alguma "cozinha de autor" é arte. Não sei se na "cozinha de autor" há apenas experimentalismo acaso que umas vezes dá resultados consagrados, outras vezes serve para ir para o lixo depois das primeiras garfadas. Uma gastronomia de laboratório (como é o caso da gastronomia molecular) tresanda, por outro lado, a artificialismo. Mas cozinhar é lidar com elementos, é entrar nos terrenos da química. Quantas iguarias hoje celebradas são fruto do acaso? E quantas foram conquistadas pela destreza química dos gastrónomos?
Ostras com molho de terra. A primeira reacção: repugnância. Afinal, quem come terra? É óbvio, depois era explicado, a terra passa por uma demorada depuração que a torna comestível. Não deixa de ser terra. Só que depois da reacção espontânea, outras interrogações amaciam o desprazer da ideia. Quantas invenções gastronómicas não derrubaram barreiras do tradicionalismo culinário? Se formos por aí fora vasculhar a origem do que comemos, quantos não mergulham num leito de perene indigestão, a quantos não apetecerá apenas uma dieta à base de pílulas com todos os ingredientes de que precisamos?
Alguns exemplos: os vegetais biológicos que estão na moda não são adubados com estrume? O solo onde acamam esses legumes é fertilizado pelos dejectos do gado – o esterco nauseabundo de que todos fogem. Sabemos que há processos químicos que adulteram os elementos e que, nos segredos da fertilização, organismos microscópicos transformam a matéria repulsiva num segredo de vida que desabrocha nos viçosos vegetais. Todavia, onde está a origem desse segredo? No estrume de bovinos. Estrume não deixa de ser estrume. Pela óptica da abjecção das ostras com molho de terra, quem se presta a comer vegetais biológicos? Ou, para rematar com outro exemplo, que dizer das dispendiosas turfas descobertas debaixo da terra pelo focinho imundo de porcos?
Não estou a insinuar que fosse capaz de me fazer à estrada, direcção algures na Catalunha, e amesendar à espera de ostras com molho de terra. A cada um os seus particulares gostos. Nunca consegui entender as delícias de um sarrabulho, de qualquer iguaria composta por sangue dos animais que são sua matéria-prima. Nisto da gastronomia, que haja flexibilidade mental. Para uns, a ginástica da mente é o nutriente do desassombro que é experimentar combinações gastronómicas extravagantes. Eles serão sempre extravagantes – ou porque ficaram a gostar da bizarra iguaria, ou porque tiveram a coragem de a provar. Para outros, para não ajuizarem os adoradores dessa gastronomia como bizarra gente a precisar de internamento psiquiátrico.
A gastronomia tem limites? Não, rotundo. Quem se pode arrogar ao direito de matar a criatividade? As invenções da gastronomia são um produto da criatividade – quando não emergem como produto do acaso, que às vezes também sucede. Há combinações de ingredientes que nos soam improváveis quando, pela primeira vez, os vemos em matrimónio gastronómico? Avança a humanidade quando isso acontece. Podemos torcer o nariz, jurar a pés juntos que jamais daquilo comeríamos. Podemos, até, excomungar os insólitos gastrónomos extasiados com iguarias que nos parecem ridículas. Mas deixe-se espaço à "cozinha de autor", à gastronomia extravagante.
Há quem coma túbaros, que é o "nome técnico" para testículos de porco, e ache delicioso. Quem lamba os beiços com gelado com sabor a sardinha. Quem aromatize o leite-creme com uma folha de louro e cravinho. Quem, à frente de todas as vanguardas, possivelmente servindo-se de avançadas técnicas e socorrendo-se de exímio saber químico, faça acompanhar uma sobremesa com um molho que é reprodução fiel de um famoso perfume.
Não pode a gastronomia ter um céu. No dia em que isso acontecesse, a humanidade esgotava a razão de comer – entenda-se, de ter prazer ao comer. É esse o maior legado da "cozinha de autor", da reinvenção da gastronomia: corroer a monotonia alimentar.
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