11.3.09

Facínoras bons são os que têm pedigree de esquerda


A visita do presidente angolano. Primeiro, definitivamente, ética e negócios não dançam a mesma música. Segundo, da habitual superioridade moral que as esquerdas reivindicam para si, uma ideia: há facínoras com os quais acabamos por condescender. Como se fossem facínoras bons – ou bons facínoras, que a ordem dos factores é arbitrária.


Ontem, todos os partidos com lugar no parlamento, com a excepção do Bloco de Esquerda (BE), ou teceram loas ao ditador angolano (PS, PSD e PCP) ou ficaram por um silêncio ensurdecedor (CDS-PP). Até nisto o bloco central é um mau exemplo. Os imperativos do pragmatismo sobrepõem-se a outros valores.


O relacionamento com Angola está viciado. Estamos de cócoras, numa posição que imagino ser confortável para a ganga angolana, lambuzando-se com um cenário que inverte estatutos sedimentados em séculos de história. O outrora colonizado manda no que foi seu colonizador. Os negócios assim determinam. Ou estendemos a passadeira para os angolanos passearem a sua pesporrência, ou os negócios caberão a outros. Pelo caminho, fechamos os olhos a um rosário de violações de direitos humanos, a uma democracia que não passa do nome, à fortuna colossal de José Eduardo dos Santos e de um séquito muito restrito em contraste com a pobreza obscena de quase todos os demais. Assobiamos para o alto. Fazemos de conta que Angola rima com normalidade. Só para termos lugar no lauto manjar dos negócios numa, diz-se, "terra promissora".


O respeitinho na ordem internacional fala mais alto. Sinal dos tempos, as terras onde existem mercados cheios de potencial encaminham terras outrora poderosas à sua pequenez. Estou à vontade para o que vem a seguir, pois já aqui deixei, por várias ocasiões, credenciais de ausente nacionalismo. Neste relacionamento enviesado com Angola, curvamo-nos em respeitosas vénias para deleite sumptuoso de quem é pajeado. A força dos cifrões suplanta a humilhação a que somos remetidos pelos tratantes angolanos. O que sobra é um silêncio cheio de cumplicidades.


A irmandade de políticos e empresários sequiosa das boas graças das autoridades angolanas não percebe (ou finge não perceber) que esses são lucros manchados pela ignomínia, quantas vezes pelo sangue derramado pelas purgas que continuam, quantas vezes dinheiro fétido com o odor dos cadáveres de angolanos que morrem enquanto um punhado de privilegiados nidifica na abundância. A ingenuidade que me persegue manda ponderar que nem todos os meios justificam os fins. Os negócios em Angola – e a forma como são autorizados, com relatos de corrupção e nepotismo em estado puro – são isto: fechar os olhos aos meios pois o que interessa é chegar aos fins. O silêncio do CDS-PP e o apoio entusiasmado do PS, PSD e PCP, mais a água na boca de empresários para quem a palavra "escrúpulo" não faz parte do dicionário, mostra a conivência com uma ditadura que se travestiu de democracia. São todos cúmplices. Os de cá, covardes também.


Por uma vez que fosse teria que aplaudir a esquerda caviar. O gesto de reprovação da cleptocracia angolana foi uma boa surpresa. Ainda estou para perceber que táctica congeminou para se demarcar da genuflexão uníssona dos outros partidos. Passo à frente dos cálculos da pequena política partidária. Até porque não seria a primeira vez que as várias esquerdas condescendiam em relação a ditadores que habitam a casa da esquerda. A ideia dominante é esta: os ditadores que vieram da extrema-direita não têm remissão. São casos perdidos. Os ditadores que navegaram pela esquerda e entretanto fingem converter-se às maravilhas da democracia merecem tratamento generoso. Num facínora de esquerda que finge enamorar-se pela democracia depressa se dissolve a facínora condição. Os facínoras de esquerda depressa passam a bons facínoras – por habitarem na esquerda. É a espessura necessária para o perdão dos sacerdotes da nova moralidade.


Ia a concluir que me custa ver políticos nativos a dobrarem a espinha perante o cleptocrata angolano. O bloco central aparece todo (excepto umas ilhas que tinham interesses económicos semeados no lado contrário da barricada) irmanado em lambe botas prescrição, para gáudio da irritante arrogância do tiranete e de seu séquito. Afinal a conclusão tem outro matiz: diz-me com que andas, dir-te-ei quem és.

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