2.2.11

As regras são peias


In http://thankheavenforbeer.com/wp-content/uploads/2011/01/rules.gif
Dizíamos, com sobranceria, aos nossos convencimentos interiores. Desafiávamos convenções, queríamos escandalizar gente anafada pelas esporas da moralidade boquiaberta. Admitíamos o exagero, e fazíamos de propósito. Era uma provocação que só não era gratuita porque tinha uma intenção: a gratificação interior que passava a mão pelo pêlo da rebeldia em que nos julgávamos embebidos.
Tirávamos as mãos da algibeira, que o sangue fervente mandava que fôssemos, furtivos, estraçalhar os rudimentos das regras a coberto da noite. A adrenalina cortante lacerava a respiração, sentia-se uma palpitação aflitiva e regeneradora. A digressão ordenada pelos canteiros onde repousavam as sacrossantas regras era um banquete para os prazeres. Parecíamos javalis esfaimados que descem à aldeia e calcam os campos lavrados sem medo de uma montaria congeminada pelos aldeões furiosos. Não temíamos as consequências, tão ajuramentados na aversão a regras de qualquer jaez.
A rebeldia efervescente comandava o resto. Num laivo de racionalidade, deitámos os olhos a páginas e páginas de doutrinação que desconstruía as peias das regras. Mas nem assim os festins desordeiros perdiam a sua consumação aleatória. No apogeu do caos que semeávamos já não havia qualquer laivo de racionalidade, apenas o sangue fervente e o ódio à repressão dos espartilhos orquestrados pelos engenheiros da ordem instituída. Enfureciam-nos as lavagens cerebrais ditadas a partir dos bancos das escolas. Ou a indevida apropriação de um quinhão dos proventos do trabalho ditada a partir do fisco. Não admira que houvesse escolas e repartições de finanças vandalizadas, vidros despedaçados e pregões bombásticos pintados a tinta florescente em letras garrafais nas paredes destes edifícios.
Antes do deitar, deixávamos os corpos cansados e vestidos de negro repousar num bar que ainda estivesse aberto. Festejávamos com algazarra, os copos de vinho tilintando em brindes que sinalizavam (só para nós) a bravura dos feitos. Àquela hora, a parca clientela, já com os corpos sedentos de sono, nem se incomodava com o derradeiro acto da rebeldia impenitente.
No fundo, éramos tirantes sem o perceber. O ódio às convenções era o fermento que fazia crescer uma impiedosa intolerância. Ao início sem se perceber, mas as certezas imediatas que reduziam a poeira o edifício das regras convertiam-se num altar de sinal contrário. Recusávamos admiti-lo: o resoluto boicote das regras instituídas aplanava o caminho para umas contra-regras que não deixavam de ser regras. Esperava-nos um par de horas de sono, mas de um sono intenso, retemperador. Antes de nos escanhoarmos e nos pormos apessoados, o nó da gravata de aperfeiçoada estirpe, os dourados botões de punho que embelezavam a camisa engomada, o corpo metido num fato de corte impecável. Um derradeiro olhar furtivo ao espelho. Do outro lado, a fantasiosa bipolaridade.
Impacientes ao início, fomos percebendo, com a calmaria que o amadurecimento traz, que há palavras de que não podemos escapar. Por muito que queiramos, são perenes. Quando julgamos que as derrotámos, no fim da linha lá estão elas. Derrotadas mas existentes. Para serem lembradas, para que não se percam da memória os seus fragmentos estilhaçados. Tal como estas palavras, as regras: uma ditadura desapiedada, porque são irrefragáveis.

Sem comentários: