18.2.11

Homem a dias (de fato e gravata)


In http://international.vileda.com/upload/0005/0210/Esfregona_naturals_completa_sin_pack_copia.jpg?1257345033
Um homem chega a casa moído por um dia de trabalho, ainda todo engravatado. Depara com uma colossal diarreia depositada pela cadela que no dia anterior agasalhara o estômago com dois folhados de salmão surripiados aos planos de uma refeição posterior. O homem, ainda engravatado, mete mãos à obra. Atira-se à esfregona, enche o balde de água e detergente, arruma, como pode, a mistela com papel absorvente, dá corda à geringonça humedecida limpando o chão com os farrapos azulados que lhe dão extremidade.
Só dá conta que ainda está vestido como saiu do trabalho quando já leva a função quase terminada. Não cerceia o braço. Interroga-se se não terá sido tardia a constatação do engravatamento enquanto se desenvencilha da lida doméstica. As mangas da camisa e a gravata estavam sem vestígios de sujidade. Sossegado, convenceu-se a completar a função sem mudar a vestimenta.
Desembaraçou-se da água imunda pelo cano da sanita. Tirou o casaco e arregaçou as mangas: enxaguar o balde decantava precaução para não ser borrifado com os pingos que se esvaíssem. Teimosamente, conservou a gravata. Não haveria de a molhar – sacudiu-se da perplexidade, enquanto começava a convencer-se da destreza para as lides domésticas. Era arriscada tarefa. Uma amnésia forçada varrera da lembrança os pequenos acidentes que bolçavam a desastrada veia para as labutas da casa. Viver sozinho tem os seus custos. Aprender a derrotar a inépcia para as tarefas domésticas que sobravam depois da mão mágica da empregada era o desafio. Haveria de limpar, e como deve ser, o restolho canídeo. E nos preparos em que entrara em casa. Uma prova dos nove. Para ser a sério, não se podia despojar da simbólica gravata. Como se fosse a prova de fogo de um aspirante a trapezista, o equilíbrio precário a lembrar como estava tão perto de sujar a fatiota.
Outro lembrete mental: o chão tinha sido lavado, escorregava. Não fossem os pés trocar o passo e os costados bater no chão, impunham-se os passos lentos, bem medidos, a sola dos sapatos cautelosamente arrastando-se pelo chão molhado. O forçado homem a dias metido em fato e gravata estava orgulhoso. Era resplandecente, aquele chão que encontrara imundo. Amparou-se na mesa da cozinha. Atónito, sentia aqueles gestos como a façanha do dia. Fizera tudo direito, sem percalços nem sujidade impregnada na aperaltada fatiota.
Absorto, ou talvez apenas exangue, permaneceu amparado no rebordo da mesa, aturdido por pensamentos fugazes. A certa altura, olhando para as extremidades da camisa e para a gravata sem qualquer nódoa, prometeu que haveria de testar a destreza gastronómica com a mesma fatiota. Lembrara-se de programas de televisão com afamados chefes de cozinha que não fabricavam o manjar no habitual traje alvo encimado pelo avantajado chapéu que escondia crânios inventivos. Passeavam-se na cozinha, apessoados, escuro fato e impecável gravata. Dispensavam a ajuda do avental. Às vezes, uma câmara filmava grandes planos e não se notavam sequer salpicos de gordura. Nem quando a preparação do repasto exigia frituras.
Se os chefes de cozinha conseguiam, por que não seria capaz de se atirar para o meio dos tachos sem besuntar a impecável fatiota? Assim como assim, o feito já fora conseguido na exigente função de subtrair ao chão a imundície espalhada pela indisposta cadela. Inscreveu o desafio no rol das “things to do” mentalmente armazenado.

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