4.2.11

Sem freio


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Ele dizia: “enchemo-nos de desonra quando não domamos os instintos?” Ela, silenciosa, o olhar remotamente fixado no horizonte, remoía na pergunta. As mãos uma sobre a outra, os dedos cruzados em forma de travão que refreava o desassossego. Não percebera a interrogação; ou melhor: não percebia por que tinha sido feita a interrogação. Acontecia-lhes muitas vezes. Pareciam gravitar em órbitas diferentes, como se os particulares universos em que os dois mergulhavam estivessem nos antípodas.
A medo, depois de uns largos momentos de silêncio, arriscou uma resposta: “Talvez...mas que interesse isso tem? Os instintos...os instintos estão-se nas tintas para a honra.” Ele largou o copo de vinho, dirigiu o olhar perplexo para ela. Não estava à espera do desassombro da resposta. Surpreendido, quis levar mais longe o exercício (admitia-o interiormente: estas conversas que às vezes esboçava não tinham outro objectivo senão especular com as palavras que viessem entoadas, uma mera encenação com as palavras). E pôs outra interrogação à frente dos olhos dela: “não tens remorsos? Não acordas possuída pela vergonha?
Ela mostrou um esgar de enfado. Não estava confortável com a conversa. E com a insistência dele. Arqueou o corpo sobre a mesa da esplanada, o rosto sobre o dorso da mão. O olhar estava fixado na direcção dele e, contudo, trespassava-o como se de uma transparência se tratasse. Ele notou cansaço nos seus olhos. Ao fim de outra pausa para encontrar as palavras certas para a resposta, ela ergueu-se do colo da mesa num repente e com as suas habituais palavras adocicadas satisfez a curiosidade dele: “eu não sei o que te pode interessar se sou assaltada por fantasmas. São os meus fantasmas. Dispenso o teu altruísmo. Fica com o teu egoísmo. Aproveita-o em mim.
Foi a resposta mais improvável que ele podia imaginar. Agora era a sua vez de ficar aprisionado a uns longos momentos de silêncio, desarmado pela franqueza dela. Nestes passos em que o silêncio foi rei, sentia-se preso entre os dois braços de um dilema. Algo lhe dizia que o melhor era matar o assunto por ali. Do outro lado, a imensa curiosidade intelectual punha-o a congeminar como dar corda à conversa. Mas temia que ela mostrasse outro esgar de desprazer.
Estava com os ossos divididos entre os dois lados do dilema e não deixava de remoer nas últimas palavras que ela havia dito: fora desafiado a aprovar o seu egoísmo nela. Ficara sem perceber se nestas palavras se encerrava a mais pura entrega ou se era uma indiscreta forma de matar uma conversa que desossava o incómodo dela. Desta vez o longo silêncio foi da sua lavra. Ela conseguira atirar para cima dele o incómodo. O que adensava o desconforto interior que o invadia. Como era possível ela ter virado a conversa do avesso e agora era a vez de ele estar assoberbado com as dores interiores que o percorriam?
Em sinal de capitulação, pôs termo ao longo silêncio que testemunhava os seus olhares perdidos no firmamento. E segredou-lhe ao ouvido: “sabes? Eu gosto que não haja freios entre nós. E só isso é que interessa.

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