22.2.11

Liberdade condicionada


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Um dilema, dos existenciais. Um amante da liberdade – é o auto-pronunciamento, nunca desmentido por vivalma – pode cercear a liberdade dos outros? Se fizer jus aos pergaminhos que julga serem seus, o que acontece se os mais chegados entre os mais chegados fizerem uso de toda a liberdade que a coerência manda respeitar? Como reage, se tamanho arsenal de liberdade o magoar? Deixa-a proceder para não atraiçoar os princípios, magoando-se insuportavelmente? Ou recusa a dor e mete areias na liberdade alheia, atraiçoando-a e, de caminho, atraiçoando a coerência?
Palavra às interrogações dos pragmáticos: de que adianta a rigidez das ideias? As ideias que nos povoam merecem uma contemplação acrítica? E se as circunstâncias mudam e o cenário já não é o mesmo, devem as ideias ficar embebidas num frasco de formol, inertes? E se afinal os princípios forem atropelados pelo zelador à primeira prova de força, serão um embuste (os princípios; ou, o que será pior, o serem considerados dogmas)?
A meio da contenda, a desorientação instalada. Quase como se o corpo andasse à procura de azimutes no meio de um nevoeiro indecifrável. Nem a palavra certeza faz sentido quando assoma à boca. A angústia que esfacela a pele volteia-se em arabescos incendiários: comete-se a aleivosia de atraiçoar as ideias entronizadas. As ideias que se julgavam matéria inerte, os rochedos inamovíveis que porfiam, estóicos, contra os elementos em fúria. Eis o dilema sinistro: não eram precisos ventos com suor a furacão nem a mestiçagem da chuva e da lama escorrendo em catadupas para estilhaçar os penedos. Uma brisa gentia, soprada de uma coutada indiscreta, e o penedo esboroou-se num acto só. As ideias que pareciam dogmas, frágeis como papel vegetal.
Os pragmáticos, outra vez: as ideias são de plasticina. Todas. Se são imprestáveis, que sejam atiradas borda fora. Trocadas por outras. Já não sobram as dores interiores pelo fracasso dos actos que depuseram os princípios no vazio da sua impraticabilidade.
Às vezes dava jeito ser como os pragmáticos. Refazem tudo a eito, na voracidade de um instante. Como é fácil desfazerem-se de um pano de fundo, trocá-lo por outro que empresta uma cor tão diferente ao cenário por detrás. O pior é quando se levantam prantos no aliciamento do pragmatismo. As ideias que se julgavam inertes estruturais não passam de sons guturais que ecoam vagamente. Os prantos parecem desmentir os pragmáticos. Revisitam as ideias hipotecadas. Obrigam à desmultiplicação das interrogações. Essas interrogações afivelam a desorientação de tudo.
A pergunta mais importante estava por chegar: as peias que se jogam sobre a liberdade de alguém não são a patente negação dessa liberdade? Se os sinos da coerência dobrarem a rebate, outra pergunta mais atroz: quem condiciona a liberdade de outrem não cauciona o desrespeito pela sua própria liberdade? Nem é preciso invocar o princípio cristão (hélas) que nos convida a tomar o lugar do outro, do atingido pelos actos próprios, antes de os praticarmos. A singeleza do acto emparelha-se na sua gravidade: quem mete peias na liberdade do outro não merece a sua própria liberdade.

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