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Não açambarques a monotonia. À inveja dos malefícios, manda dizer que estás servido. Destempera os açoites do porvir rançoso que atraiçoam os sentidos. Podes julgar que te entregas num remanso qualquer, como se o cérebro enganasse os ouvidos e estes escutassem o doce ciciar das águas que descem o emagrecido caudal do ribeiro. A miragem oculta a enxurrada que se avizinha. Como se o dique rompesse e as águas lamacentas, em torrente avassaladora, pulverizassem a devastação em instantes.
Roças os dedos na navalha fria, naquela parte metálica que apetecia espetar na perna, bem fundo. Tão fundo que chegasse ao osso. Os dedos contemplativos no aço da navalha são mastins da bonomia. Os espasmos, na excitação dos instantes em que os pés assentam na majestosa fímbria do precipício, uma patologia irrecusável. Queres lá saber da normalidade. E o que é a normalidade? – interpelas os sentidos, atónito pelo ostracismo dos outros. Todos os dias olhas para o caudal e metes o corpo nu na água fria. Arremetes contra a caudalosa maré como se provasses só a ti mesmo a brava têmpera que navega pelas veias ferventes.
Às vezes, quando o fio onde os pés assentam se adelgaça, crescem as tonturas que afivelam o desequilíbrio. Envaidecido, julgas-te um trapezista circense sem audiência para julgar as proezas que cortejam o ego insano. A corda torna-se tão fina que só consegues pôr um pé de cada vez. O vento em ebulição ajuda às vertigens que são o teu nutriente. Vozes apoquentadas dizem-te, cá de baixo: “olha que cais, estás no fio da navalha”.
Desembainhas a navalha enquanto o verniz da corda se estilhaça, os entrelaçados têxteis desembrulhando-se dos seus forçados nós. Tu foges como podes da corda que se desengonça atrás de ti. As vozes apoquentadas caldeiam-se com a vertigem que não te é dada a conhecer. Como te divertes com o pavor dos rostos lá em baixo! Com a navalha, cortas pedaços de corda à tua frente, ao que se soma a destemperança que te precede. O sublime equilíbrio ensina-te a saltar, periclitante, entre os pedaços soltos. Atinges o zénite, dirias que voas como só às aves é dado voar. As tuas pernas, as asas que levam já para fora do que os olhos aterrorizados das apoquentadas vozes apreciam.
Só há milagres para quem se aprisiona a tacanhos horizontes. Os elementos são-nos dados. Só por extravagante prestidigitação conseguias rivalizar com o voo dos pássaros. Ou em sonhos, os festivos sonhos que te dedicam um sorriso amável nos cantos da boca enquanto amoleces no sono. Às vezes, é tão frágil a fronteira entre sonho e pesadelo. Convenceras-te que o sonho era o palco onde as impossibilidades eram fungíveis. A certa altura, a corda esticou até ao limiar, onde já não havia corda a escorar o voo intrujão. Os pés contracenavam com o vazio, a tremenda gravidade a puxar o corpo para baixo. Era como se houvesse um turbilhão a fazer de íman, o corpo sugado para as profundezas onde nem o fundo se alcançava.
Tanto esgotaras as impossibilidades decantadas pelo fantástico sonho, que num golpe de asa, ganhou metamorfose de pesadelo. A tua sorte foi a gravidade voraz que te acordou. Sobressaltado, submerso em grossas gotas de suor, os olhos esbarraram na mesa de cabeceira. E na navalha que repousava atrás do relógio.
1 comentário:
Não será preciso o malabarismo sobre o fio da navalha para sentir o fôlego haurido pela gravidade, a força (insignificante, por sinal, perante outras) que nos esgota constantemente. Sem dúvida, sobrevalorizada à nossa imagem.
Felizmente, não suficientemente rápida para impedir-nos de perceber quando caímos em pesadelo.
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