1.2.11

A vida é uma brevidade

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(Depois do filme  Biutiful”  de Alejandro González Iñarritu)
A morte, madrasta, cerceia as vidas. Prematuras, as vidas levadas pelo algoz que as dissolve num nada. Podem as religiões certificar, em prova de vida dos seus dogmas, que continuamos vivos depois do funeral num compasso que traça as bissectrizes da espiritualidade. E podem narrativas fantasiosas atirar pétalas coloridas para cima da morte. Fazer da morte um festim, ou como diriam os inapeláveis optimistas, a candeia que se alumia para a perpetuação da existência fora do corpo que se extinguiu.
Como os invejo, aos que não se amedrontam com a morte. Como os invejo, a serenidade perante o último fulgor, aquele derradeiro suspiro que já não é expirado. Os olhos tranquilos que se encerram na definitividade de um corpo inerte, como se ainda fosse possível discernir um esboço de sorriso embebido no canto dos lábios. Fantasia-se: que os olhos encerrados se atiram por cima das muralhas que os mortais não sobem, reencontrando os entes queridos que já partiram. Só para provar o remanso dos perfumados vales onde se deita o espírito renovado pelo óbito.
Eu digo que há uma certa pusilanimidade dos que aspiram a essa imortalidade. Digo: que essa imortalidade não se liberta do espartilho das crenças. Como todas as crenças, improváveis (no sentido de não se poderem provar). E digo mais: que esse é talvez o maior dos temores pela morte. Um santuário de ilusões, os pés deitando-se a um caminho onde tudo é no seu oposto mas os olhos teimam em discernir uma construção que só neles existe. Entretanto, a areia fina que se aloja nas pálpebras cega os olhos. Que passam a imaginar idílicos cenários, apenas miragens.
Não sei se admire os que encaram a partida com serenidade. Ou se deles desconfie por dissimularem um temor que se apodera de qualquer mortal quando a ceifa enegrecida adeja, ameaçadora. As doenças são um lençol medonho, sempre esvoaçante. Olho para as manhãs que fervilham de vida e apetece denunciar as supostas divindades que são supostas responsáveis pela construção de uma suposta harmonia. A morte é ingrediente desta harmonia?
Só a ingenuidade responderia a estas dúvidas. Teríamos a eternidade se a morte não viesse beijar os nossos pés? Prometem-nos essa eternidade, a improvável eternidade, os que persistem no laudatório da serenidade do falecimento. Só transitamos de dimensão, um reencontro com as pessoas queridas de que nos despedíramos, entre lágrimas, em funerais pesarosos. Ou, dizem-nos outros, perduramos na memória dos que nos foram queridos alguma vez no tempo. É a prova de como sobrevivemos à morte. Se ao menos uma vida não fosse um acto de individualidade, essas profecias seriam a dose certa para apaziguar os que se atemorizam com o fatal destino.
Tenho medo das doenças, como tenho o supremo medo da morte. Angustiam-me os dias que são curtos por só terem vinte e quatro horas. Roubo horas de sono para estender a lucidez dos sentidos. E atiro-me a mim mesmo de cada vez que a introspecção momentânea revela a distracção com o acessório, ou em como a teimosia desvaloriza o que tem merecimento elevando os vestígios de irrelevância ao altar das coisas importantes.
Oxalá aprendêssemos com a morte que a brevidade da existência merece uns olhos que lhe saibam prestar o máximo tributo. Todos os dias. A serenidade da morte é uma covardia.

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