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Para quê, as ruas? Para quê o atapetado fácil das avenidas, por onde os pés deslizam com a suavidade dos desembaraços? Oxalá as palpitações não fossem um afogueamento carnívoro, uma droga qualquer que tirocina os sentidos para a adrenalina que há em si. O corpo atira-se para um turbilhão sem fim, como se andasse por dentro de uma máquina de lavar em plena função.
Para quê as ruas se temos os telhados? Para quê a lhaneza das ruas, por onde se arrastam os mortais, se podemos aspirar à imortalidade na apneia de quem saltarinha de telhado em telhado? As telhas escorregadiças, embebidas no musgo humedecido, são o chão mortiço onde os pés encontram o equilíbrio instável. O corpo joga-se nos limiares onde o precipício espreita, sedutor. O desafio é dedilhar os telhados, um atrás do outro, ludibriar o musgo traiçoeiro e as telhas apodrecidas que estão ocas por dentro. Numa correria vertiginosa, que os dias não foram feitos para envergar a mantilha da monotonia.
Saltamos telhados como gazuas ensandecidas. No trote louco que é a melodia agreste escutada nos telhados altaneiros. Saltamos telhados como se fossem os contrafortes desembainhados por alpinistas. Teimando no cume, com momentâneos parêntesis para apreciar a cidade de um dos seus altos, ou o pretexto para os interregnos onde o corpo sacia o seu cansaço.
Lá em baixo, junto às avenidas largas e às estreitas ruas da cidade – as rastreias artérias – prossegue a ladainha costumeira. Os rostos sorumbáticos entrecruzam-se na recíproca indiferença. São rostos marejados que tracejam a irrelevância das existências banais. Uma tribo em forma de matilha. Nos instantes de contemplação, os olhos extenuados depuram a tristeza dos mortais nas suas rotineiras digressões. Oxalá soubessem encontrar num bazar qualquer as especiarias exóticas que emprestam significado à existência. Uns ignoram que esses bazares povoam os telhados desconhecidos. Outros sabem onde os encontrar. Mas não arriscam o destempero de trepar as escadas até ao telhado, numa transgressão iniciada com o cadeado deslacrado que trava a subida ao sótão e é continuada com a louca correria que escala os inclinados telhados. E depois há os tresloucados saltos no vazio, de telhado em telhado, uma provocação declinada.
Talvez pelo travo adocicado da transgressão. Ou pela rebeldia que fermenta pelas veias, como se nelas houvesse uma eterna juventude que se recusa a apagar a chama que as incendeia. Todos os dias, telhados como se fôssemos saltimbancos tresmalhados, diabretes que sopram a frívola espuma que embeleza os dias com uma estética falaz. Tudo se descompõe à nossa passagem. Somos furacões que trovejam com os pés, uma enfurecida pateada nas telhas gastas da cidade envelhecida.
Como se andasse, o corpo, por dentro de uma máquina de lavar em plena função. A certa altura, derrotado pelo cansaço. Até aos heróis que se dizem enfeitiçados pelos intempestivos actos é doado o cansaço. Ao corpo já não apetecem as piruetas dos telhados que salta. Entra em modo de centrifugação, o dínamo da máquina em repouso. Enxaguando o suor derramado num dia inteiro.
Os dias são nossos e o resto, o resto não importa.
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