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Ficamos num hotel todo pimpão. Ou vamos a um restaurante onde a gastronomia se torna conceptual – daqueles em que parece mais importante explicar a alquimia dos ingredientes do que degustar os sabores em que se compõem. Somos esbombardeados com cortesia às toneladas. Sentimo-nos tratados como imperadores. Não param os salamaleques. Perguntam se está tudo a preceito. Uma, duas, três, eu sei lá quantas vezes. Sem descaírem na simpatia.
(Deve ser a profissão mais difícil. Por causa da imperativa boa disposição nos dias de pior neura. Em pensando bem, são profissões terapêuticas. O sorriso bem composto quando é a última coisa que apetece é um exercício balsâmico. Ao menos durante a jornada de trabalho, durante aquelas horas que desfilam as cortesias para que foram treinados, a forçosa boa disposição suplanta a neura que medrou com a alvorada.)
Mandam as convenções: o cliente tem sempre razão. Não vá o cliente deixar de o ser e – o pior dos cenários – passar a palavra a outros que nunca o chegarão a ser. Os economistas chamam ao modismo “soberania do consumidor”. É a democracia directa na escala da produção. Já que paga uma nota preta pelos hotéis supimpas e restaurantes gourmet que premeiam a criatividade dos chefs de cuisine, que ao cliente seja passada a escova pelo pêlo. Sorrisos de orelha a orelha em dentes zelosamente dentífricos. Genuflexões respeitosas à entrada. Só falta levarem os clientes ao colo ao quarto do hotel (que a bagagem já subiu por mãos alheias e o carro foi estacionado por outrem).
Mordomias que nunca mais terminam. Às vezes, até parece que as mordomias são um pedido de elogio aos serviços. Quando perguntam se está tudo a preceito, manda a educação (que só gente de pergaminhos é que frequenta estes lugares reservados) que se diga que sim, que tudo passa com distinção no exame da qualidade. A cortesia vira-se do avesso. Faz lembrar aqueles doentes do narcisismo que precisam de elogios e perguntam por eles a toda a hora. Manda o cinismo desconfiar dos excessos de cortesia. Só desautorizam a desconfiança cínica os distraídos, ou os que acham que a cortesia infinita é trato de polé às suas pessoas (como se as suas pessoas fossem únicas no merecimento das mordomias).
Estes cuidados com o cliente são um oportunismo. É que os serviços faustosos têm raros defeitos. Durante as mordomias incessantes, sabem que perguntar pela satisfação do cliente é passar pelo pêlo ao contrário. Ao responder, é o cliente que elogia o prestador do serviço. As mesuras têm olho esperto. São uma simpática asfixia do cliente. Ele nem tem tempo para dizer um ai se houver um contratempo, que nem sequer há tempo para o contratempo pôr o nariz de fora. E enquanto somos tomados pela erudição gastronómica da maître ao explicar a alquimia dos ingredientes do prato que amesenda, a enxurrada de sabedoria subtrai sabor à iguaria. Quando vem a conta, sabemos que as mesuras são umas travessuras pagas a peso de ouro.
O mal é que rareia o aprazimento. Os restaurantes pimpões entretecem saudades das tascas rançosas. Mas a boçalidade de uma tasca rançosa fermenta as saudades dos tratos de polé urdidos pelas mesuras janotas.
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