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Marinheiro de si mesmo, todas as manhãs revelava as escotilhas por onde o olhar se soerguia. Podiam os céus prometer a irreverência das tempestades, ameaçar com trovoadas medonhas. Podiam vultos assustadores acenar aos ouvidos murmúrios que queriam furtar o proveito das coisas. Ao abrir cada escotilha matinal empurrava os ventos sombrios. Tudo se aclarava quando as escotilhas irrompiam entre a poeira deitada pelo vento nocturno.
O marinheiro emprestava a valentia contra a imoderação dos elementos. Estava treinado. Fainas duradouras entre a ferocidade de pavorosas marés trataram de esbulhar o medo. Aprendera a tragar o seu próprio medo. Ensinaram-lhe a arte outros marinheiros calejados. Dizia-lhe um, o das barbas farfalhudas e grisalhas, com a dureza das palavras encardidas pelo sal dos mares: “no medo, ou matas ou morres. É bom que faças o funeral do teu medo à primeira tempestade”. O dedo em riste do veterano encaminhou o olhar do marinheiro novato para a escotilha nas proximidades. Era o dedo trémulo que olhava, enquanto o olhar cansado deitado nas rugas do velho parecia perdido no firmamento. Numa enigmática contemplação, aconselhou: “procura as escotilhas. São o teu antídoto do medo”.
A primeira tempestade parecia a restante. A noite queria entrar na luminosidade do dia. Parecia que já não havia dias. A luz clara (ou qualquer esgar de luz) em total declinação diante da enfurecida coreografia dos elementos no desalinhamento dos mares. No entardecer da bonança, sondou os relógios em redor para indagar se a tempestade tinha sido tão demorada. Durara uma noite inteira.
O medo que trouxera as pulsações para a boca do estômago subjugou a lucidez. Nessa noite, quis partir em demanda da escotilha mais próxima. Os labores do navio impediam a covardia que se insinuava à boca de cena. O rosto encharcado pela mistura da chuva impiedosa e da salgada água dos mares revoltos ocultava o medo. O marinheiro passou com distinção o tirocínio das tempestades que afocinham os navios para as profundezas dos mares. A sua pessoal escotilha foi a bravura desconhecida. A tempestade neófita tinha-o posto à prova. Sentira-se como um cão acossado numa viela estreita e sem retrocesso. À sua frente, um muro alto intimidava. Como os cães acossados, de nada valia arreganhar os dentes ao infortúnio rival. O infortúnio não se acanhava, seguro da sua superioridade.
A escotilha estava do outro lado do muro. A lucidez prometia resolução no lado escondido do muro. E por mais que uns querubins arrevesados sussurrassem ao ouvido, em perturbante sinfonia, que covarde seria se não entrasse na peleja com os mastins do infortúnio, as palavras sábias do velho marinheiro ecoavam, incessantes: “não dês importância aos mastins que atiçam a raiva. Ou ainda pereces no envenenado regaço da raiva, a cilada de ti. A escotilha está do outro lado.”
No restolho da tempestade, aquelas palavras não paravam de o assaltar. Decorara-as como um catecismo. À primeira folha de papel, organizou-as em tinta permanente. Não fez como os marinheiros dos usos, que passam os tempos livres a enfiar mensagens enigmáticas para dentro de vazias garrafas de rum. O marinheiro emoldurou as sábias palavras, deu-lhes sebo para não se gastarem com a humidade dos mares. E colou-as no reverso do relógio de bolso que um lunático avô lhe dera.
1 comentário:
Belíssimo texto! Um estalo de vigor.
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