25.2.11

Um brutamontes pantagruélico



Há iguarias, que pertencem ao cardápio gourmet, que custam os olhos da cara. Gente que era capaz de roubar para degustar, com notório prazer orgástico, uma trufa negra, umas ovas de caviar Beluga, um champanhe de primeiro quilate, um Porto centenário – daqueles que até as mãos tremelicam de medo só de se pousarem na empoeirada garrafa que vem agarrada a repulsivas teias de aranha.
Um dia destes experimentei um preparado que levava uns vestígios de trufa branca. Soube-me a vomitado. Concedo: tenho algumas esquisitices gastronómicas. Há sabores que não combinam com o pessoal palato. Os queijos de diversa proveniência e que competem entre si para levar a palma do que tresanda pior, por exemplo. Depois de provar a sopa fria de trufas e mais-não-sei-o-quê, destronei os queijos mal cheirosos do palanque dos sabores intragáveis. Já não me revolvem tanto o estômago os queijos parmesão, serra (este com o seu peculiar odor a sulfato de peúga) ou camembert. As pequenas lascas de trufa que repousavam no topo daquela mistela esbranquiçada que serviram antes da entrada (sem ter sido pedida – um “miminho do chefe”, fui informado) quase tiravam o apetite para o resto da refeição.
Fiquei angustiado. Tenho a mania da gastronomia, dos agridoces e outros experimentalismos pantagruélicos. Fico embeiçado diante de um programa de televisão que reinvente receitas e combine ingredientes que, dir-se-ia, serem passos em falso na coreografia gastronómica. E fiquei angustiado porque sabia que as trufas eram um dos supra-sumos de quem admira a alquimia culinária. Afinal, devo ser um brutamontes a fazer-se passar por um esboço de Pantagruel. Os puristas não perdoam a heresia. Dirão: os que não tiram proveito da degustação de umas lascas de trufa não são merecedores de comendas gastronómicas. À lapela não podem exibir as medalhas de Pantagruel. São uns esbirros da gastronomia empobrecida.
O mal é que também não milito na gastronomia tradicional. Os pratos popularizados pelo povo comezinho, a que se vulgarizou chamar “cozinha tradicional”. As morcelas causam náuseas, levam a desistir do amesendar. Tudo o que seja feito com sangue de animais subtrai-me o apetite caso esteja sentado à mesma mesa. E nem o olfacto que se vai ausentando cauciona o convívio com estas iguarias que fazem crescer água na boca ao povo comezinho.
(E como lhe cresce água na boca? Quando a travessa viaja no antebraço do empregado de mesa, sulcando os ares e deixando atrás de si o odor característico, os que amesendam nas imediações e ainda não estão servidos comem com os olhos. A saliva escorre dos olhos que cintilam de prazer, antecipando a degustação de pitéu semelhante que há-de, consiga a paciência sossegar a desaustinada gula, amarar nos pratos em espera ansiosa.)
É esquizofrénico. Não teria a franquia para ser membro da excelência do gourmet por pessoal embirração com as trufas farejadas por bácoros repugnantes entre a turfa da floresta. Mas também não seria sócio honorário de uma confraria folclórica que entroniza e deifica iguarias da gastronomia tradicional.
Talvez – na arte de Pantagruel, como em tantas outras coisas – um pária.

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