In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTkkV8OcaGCV0bXSRS_mQ_q4o35xZROCxKA9eGFKUXVHFVlu4kOjOtfR3Mrb4Rrx8e7tNR9T1LOeUkptwZ0uTXqbLqXwY7sNwKskkS4sVqQtn6hivp7QZ4Yq2B47Eo0MsyoOXQTg/s1600/As+espadas.jpg
Um baralho inteiro espalhado
pelo chão do quarto. Inclinada sobre o dorso, enquanto o sangue descia pela
cabeça e embargava o entendimento, olhava para as cartas de todos os naipes que
desarrumavam o quarto. As cartas tinham sido atiradas ao ar e todas aterraram
com o rosto virado do avesso.
Recolheu meia dúzia de cartas.
Interrogou-se que sorte, boa ou bastarda, calhara na aleatória escolha. Não
queria fazer inferências, nem que outros tantos oráculos se destapassem mercê
das cartas levantadas. Não era um exercício de cartomancia. Apenas um
passatempo, porque o tempo de então não tinha outra serventia se não ser gasto
em horas lúdicas que derrotassem o tédio. Dispôs as seis cartas ainda com o
rosto virado ao contrário. Para o jogo ser mais a sério, postulou um naipe como
trunfo. Espadas a desempenhar a função.
Começou a revelar as cartas,
com a destreza de uma groupier. A
primeira foi um rei. Não era de trunfo. Seguiu-se um quatro de trunfo. De um
trago bebeu o gin que estagiara breves minutos no pequeno copo. Em cima do
lastro de bebida abraçada à noite que já ia na sua lonjura. As cortinas de fumo
dos cigarros sucessivamente fumados enraizavam-se nos olhos. Com a ajuda do
álcool que passara das medidas, os olhos tingiam-se no raiado dos pequenos
vasos sanguíneos em dilatação. Esboçou uma gargalhada, entaramelada com um
pensamento em voz alta: “um quatro peão
vale mais que o rei. Coitada da monarquia, que passou a ser uma minarquia”,
continuando a gargalhada insana (sem saber que minarquia não é o antónimo de
monarquia).
Faltavam as outras quatro
quartas. Virou três delas de supetão. Um sete de copas, uma rainha do mesmo
naipe do rei (casal inseparável, nem que seja para inglês ver – e lembrou-se
das histórias pouco edificantes da monarquia espanhola, estilhaçada no restolho
dos escândalos). E um simples dois de trunfo. Faltava a última carta. Fez de
conta que acreditava naquilo que considerava um embuste – a força mental que arregimenta
energia interior tanta que os desideratos, assim haja convencimento do seu
atingimento, são aconchegados por ambas as mãos. Tinha de ser o às de trunfo.
Tinha de ser o às de trunfo. Não fora. Era uma carta insignificante – um número
qualquer, pequeno, e de uma cor oposta à do trunfo.
Irritada, saiu à rua e
vagueou sem destino, sem se importunar com a chuva madraça que a encharcou à
medida que se encurtava o tempo até à alvorada. Da alvorada que furtara o sono
que já não viria. Esse era o seu às de trunfo.
Sem comentários:
Enviar um comentário