29.3.19

Rio cheio (short stories #105)


Mogwai, “Kin”, in https://www.youtube.com/watch?v=5kjXz-vYa40
          Não procuro o leito do rio: ele segue caudaloso depois das chuvas inesperadas, que as chuvas no fim da primavera são sempre inesperadas. Está medonho, o rio. E, ao mesmo tempo, admirável. Uma força da natureza, para usar um lugar-comum. As águas apressadas cavalgam em si mesmas, tropeçam, enovelam-se em remoinhos sucessivos. Nem imagino a convulsão interior que atesta a fúria do rio. Nos preparos indomáveis, o rio mete respeito. Que ninguém ouse lançar-se às águas, que seria devorado, estilhaçado contra as rochas submersas. O leve rumorejo foi substituído por um tonitruante grito que atravessa o desfiladeiro em que o rio se contém. O eco reverbera os fantasmas que parecem esvoaçar na penumbra deixada pela convulsão das águas. Dir-se-ia que se avistam esses vultos, desenhados nos interstícios da cortina de espuma salivada quando o rio esbarra num desnível ou embate fragorosamente numa cadeia de rochas. Ah, se ao menos fosse possível filmar abaixo da superfície das águas, para saber das convulsões interiores que desassossegam o rio. Desestimo a possibilidade: as águas correm turvas, lamacentas, trazem consigo vestígios de arbustos e árvores arrancados pelo rio cheio. E que interessa saber das convulsões interiores do rio, tê-las como esboço nítido? Os mirones não se contentam com a espuma à superfície das coisas; são ousados, querem saber das coisas no avesso que está contido na parte oculta. Talvez não sejam apenas mirones. O seu interesse – digamos – científico sobrepõe-se à aparência de serem mirones. Podiam (quem sabe?) cadastrar os metros cúbicos debitados pelo rio cheio, fazer uma cartografia do caudal do rio, comparar as fotografias do rio quando segue manso e do rio agora indomável. Para aprenderem com os humores do rio. Para terem seu próprio tirocínio quando o desassossego tomar conta deles e os dias forem iracundos e a serenidade em fratura exposta, sem saberem do paradeiro da lucidez, a vista embaciada por tantos sedimentos untuosos que se soerguem ao acaso. Saberiam, se descessem o curso do rio, que ele tem foz. Desagua num rio de grandeza maior, ou até no mar (se for rio de grandeza maior). E que no estuário derradeiro o rio aplaca a sua fúria, até ela se dissolver no caudal maior que o recebe. 

28.3.19

Não falem dos cães acorrentados se nada fizerem por eles


Street Kids, “Propaganda”, in https://www.youtube.com/watch?v=Uv4tV4gnZzw
Dos cães acorrentados, em casotas insalubres, expostos aos rigores do inverno e à canícula do verão, comendo os restos das refeições dos humanos, sem direito a um afeto, descuidados como coisas à mercê da vontade de quem os destutela. Os cães perdem a liberdade, ou nunca a tiveram. Os seus exíguos movimentos na exata medida da folga, da pouca folga, da trela que os acorrenta. Bandos de gente antropocêntrica nada ajuíza sobre os cães acorrentados. Que é uma forma de tecer um juízo: se a imagem de um cão acorrentado, macilento, esfaimado, medroso, não lhes invade a consciência, é sinal que cuidam do cenário como objeto de normalidade. Melhor será não proferir juízo sobre as almas abestalhadas que mantêm os cães nesta escravatura. 
Um punhado de gente insurge-se. Denuncia os maus-tratos, que é sempre maus-tratos manter um cão acorrentado a uma casota insalubre, exposto aos rigores do inverno e à canícula do verão, comendo os restos das refeições dos humanos, sem direito a um afeto, descuidados como coisas incorpóreas. Não sabem que é insuficiente. Não sabem que a vergonha antropocêntrica permanece esteio da civilização, embaciando os seus pergaminhos de civilização (o que não é da conta dos que patrocinam esta escravatura medieval). De pouco adianta desmascarar sítios e pessoas que mantêm cães acorrentados. A polícia não intervém. Ninguém intervém – a não ser que se invoque o nome de uma associação de defesa dos animais, que não hesita em passar à ação direta para extrair animais sujeitos a maus-tratos dessa condição medieval e inumana.
Não adianta esconder o diagnóstico: este é um caso em que só o pensamento (e a ação) radical quadra com uma solução. É preciso gente com coragem física para confrontar os inumanos que mantêm cães acorrentados em deploráveis condições. Pessoas que não se intimidem com a boçalidade e os modos destemperados, nem se acabrunhem com a ignorância de quem julga poder usar a razão da força em substituição da força da razão. Talvez falar na mesma linguagem, que é a única que gente deste jaez consegue entender. 
Aplica-se aos cães acorrentados, como se aplica a quem quer acorrentar a opinião pública que se insurge contra despautérios da governação. O séquito do partido do regime alista as hostes para contra-atacar. Ou se trata de movimentos conspirativos da “oposição”, como se todos os que não subscrevem a bondade do partido do regime estivessem acantonados numa inorgânica oposição (num raciocínio binário que é revelador de estreiteza de pensamento). Ou se trata de dar um aval às decisões que são atacadas pelos críticos – “o que há de errado naquilo que é identificado pelos críticos? Nada” –, atirando aos críticos o opróbrio de terem criticado, como se fosse crime passível de pena maior. 
O séquito do partido do regime, sentindo-se acossado e convivendo mal com quem dele discorda, gostaria de acorrentar os críticos e meter-lhes açaime. Seria o mundo perfeito: só concordância, só aplauso, só genuflexões, só decisões imunes à mácula, só um timoneiro predestinado com uma certa aura sebastiânica. E o resto, uma matilha de cães acorrentados e açaimados, a quem o partido do regime faria o favor de os deixar viver. 

27.3.19

Trincheira (short stories #104)


Idles, “I’m Scum” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=mx4f75ni2Hc
          Queriam-me para as hostes de uma causa qualquer. Não sei por que pensaram que tinha afinidade com essa causa. E mesmo que tivesse; não sei por que imaginaram que, tendo afinidade com essa causa (o que não era o caso, mas há sempre a possibilidade de erros de cálculo), a convocatória de alistamento no grupo que defende a causa seria aceitada sem tergiversações. Não seria o caso. Pois, mesmo que tivesse parca afinidade com a causa, não seria líquida a pertença ao grupo que a tutela. Não gosto de trincheiras. Gosto menos ainda da lógica grupal. Da pertença e dos sacrifícios que a pertença exige, pois o pregão socialmente correto recorda que devemos abdicar do eu se o nós falar mais alto. A lógica grupal, e as trincheiras em que se encerra, é categoricamente excludente. Assenta em comportamentos tribais (sem a conotação negativa da palavra), numa lógica primária, muitas vezes servida num raciocínio binário – quem não é por nós, está contra nós. As trincheiras são o subterrâneo onde se refugiam os que não têm liberdade de pensamento e são educados para uma defesa acérrima do grupo e da causa inerente. Se, por acaso, levantam interrogações ou formulam dúvidas, são destinados ao ostracismo, ou expulsos liminarmente, sem direito a defesa. Porque se convencionou que o cimento do grupo não se compadece com dissidências – mesmo que as interrogações ou as dúvidas não sejam dissidência na pessoa de quem as formula. Só há liberdade para pensar dentro dos cânones. Que são definidos por uma casta de iluminados, sem se perceber por que divina escala se autoimpõem como iluminados. É a liberdade dos iluminados que serve de bitola aos seguidores. Não gosto de trincheiras por evocarem as guerras absurdas em que os homens eram atirados para dentro de uma trincheira à espera de serem sacrificados na mais desonrosa das mortes. Prefiro saber que tenho a liberdade de pensamento que não é destroçada por pertenças a grupos e causas. Mesmo correndo o risco de arrostar o labéu da sociopatia.

26.3.19

A babugem do secretário de Estado ao aterrar em Moçambique


Anohni, “Drone Bomb Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=aUEoic7ro_o
Ato I
Uma tempestade sem precedentes foi madrasta para uma parte de Moçambique. Fala-se da pior catástrofe de todos os tempos. Ainda por cima, num dos países mais pobres do mundo. Quem for cínico pode perguntar pelo paradeiro de deus, que se terá esquecido (se, por acaso, existisse) da impiedade que é devastar uma terra onde vive gente tão pobre.
Ato II
            A ajuda internacional é uma emergência. Para socorrer os sobreviventes que perderam os haveres – casas, terrenos, animais, fontes de subsistência, comida e água. Numa daquelas circunstâncias em que o mundo humano dá uma reviravolta sobre si mesmo e apetece nele ter um módico de confiança, a solidariedade corre de boca em boca, dos governos dos países às empresas, das organizações não governamentais ao mero cidadão disposto a rapar do fundo do tacho uns trocos que seja.
Ato III
            Numa manhã soalheira e, adivinha-se pela indumentária, calorosa e húmida, a propaganda do Estado e do partido dominante chega ao olhar dos cidadãos através da encomenda zelosamente tratada pelas televisões, que não deixam de ser servis ao Estado (e, vá-se lá saber porquê, ao partido do regime). O secretário de Estado exclama, à frente das câmaras que o filmam, “chegámos e fomos os primeiros a chegar!” Exclama, com uma obscenidade nauseabunda. Como se o que estivesse em causa fosse uma corrida dos generosos para saber quem chegava primeiro ao lugar carenciado da ajuda. Só para assinalar a proeza. Como se fosse uma repetição dos descobrimentos e esta nova gesta de colonizadores disfarçados estivesse a firmar a sua lança no território colonizado – perdão, carente de ajuda – e o desafio saldado com triunfo mercê da diligência de governantes tão esmerados fosse o que interessa à audiência nativa, não a do país ajudado, mas do país onde a notícia e a soberba do Carneiro (identificação do secretário de Estado) tivesse de ser ostentada para os patrícios começarem o fim de semana com uma “boa notícia”. 
Ato IV
Volto às imagens mentais do Carneiro, da sua babugem vaidosamente escorrendo da boca que proferia aqueles palavras, o epítome da náusea, a demonstração de que o que continua a interessar não é prestar ajuda a quem precisa, mas exaltar a pátria (e o partido do regime, ainda por cima em pré-campanha eleitoral) através da ajuda levada a quem dela precisa. Era o Carneiro a mostrar que a ajuda aos outros serve, em primeiro lugar, para ajudar a puxar lustro às medalhas da pertença pátria e, para os que alinham na seita, do partido do regime. Eu fico com o vómito. O Carneiro – que, quero acreditar, terá sabido engolir a altivez ao dirigir-se aos moçambicanos – fica com toda a pestilência da pose obscenamente pútrida. Se isto é orgulho pátrio (perversamente confundido com demagogia partidária em tempos que a isso se prestam), eu prefiro ser apátrida. E quem for cínico pode, ainda, perguntar pelo paradeiro de deus, que deu caução à babugem putrefacta do Carneiro.

25.3.19

Aritmética no avesso do dia


Nils Frahm, “All Melody” (Live at Montreux Jazz Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=J44C184Dd7c
À noite os navios fundeiam à espera de vez. As suas luzes espraiam-se sobre o mar, emprestam-lhe um pouco do dia que findou. Não sei que regra impede os navios de se refugiarem no cais quando é noite. Talvez seja uma determinação dos zelosos sindicatos. Os estivadores não trabalham à noite. Têm famílias para cuidar. 
Sacrificados são os marinheiros que podiam estar a foliar nos bares onde os desembarcados matam saudades dos pés em solo firme. Como os navios não fundeiam à noite, os marinheiros postergam a folia. Entretêm-se com um jogo de cartas, um cigarro no convés, a apreciar a terra firme que hão de pisar, se tudo correr bem, na manhã do dia seguinte. Põem-se a fazer contas de cabeça. Ao que vão fazer a terra. Sonham, sem estarem a dormir. A certa altura, a cabeça não chega para todas as contas que a percorrem a velocidade tão voraz. A mesma voracidade com que os marinheiros querem ir a terra. 
Começam a fazer a contabilidade das empreitadas no avesso do dia que já fugiu. Aproveitam as estrelas que irradiam no céu para juntar as pontas da aritmética. Vão comprar mantimentos, que a vida a bordo é espartana. Vão conhecer a cidade (os que não a conhecem), para matar tempo para a noite de boémia. Os que conhecem a cidade vão servir de cicerone. E vão jantar em bons restaurantes, escolhidos a dedo num roteiro da especialidade (que os há aos magotes na sala de convívio do navio) – o seu estipêndio é generoso e autoriza estes luxos. À saída dos restaurantes, estarão embriagados. Não fará confusão a constelação de luzes distorcidas, a amálgama de luzes dos candeeiros públicos, dos faróis dos automóveis, dos néones da publicidade, das montras das lojas que, embora fechadas depois da hora do expediente, continuarão a lembrar que o consumo é imperativo para a fruição da economia. 
Porventura um marinheiro, embaciado na lucidez, há de pertencer a uma briga no primeiro bar em que desembarcarem. A correr mal, passará a noite na esquadra a curar a ressaca e a lamber as feridas do orgulho ferido. Os outros, não impressionados com a desdita do que foi levado pela polícia, hão de se entregar aos vícios da carne, para compensar a vida monástica das semanas a fio em que estão embarcados. Os que conseguirem, derrotando a litania do álcool. 
No dia seguinte, quando acordarem já nos seus camarotes, não hão de guardar grandes memórias. A menos que convoquem o avesso do dia e resgatem todas as anotações que nele lavraram. A sua aritmética. Se ao menos pudessem perguntar ao álcool pelas memórias que ele não deixou representar. Mas o álcool evaporou-se. E levou as memórias, apagando-as do avesso do dia.

22.3.19

Os frutos só estão à vista depois de abertos (e outras aldrabices)


Ólafur Arnalds, “Ekki Ugsa” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oSgaGlKr-pA
Das páginas abertas ao acaso, estando o livro sem paradeiro encostado na lombada de um sofá:
Que ninguém se iluda. Os fantasmas estão presentes em matéria corpórea. Veja-se o exemplo dos frutos. Encantamo-nos com as formas geométricas, as cores luzidias, o aroma que os frutos exaltam. Enamoramo-nos com a forma exterior dos frutos. Compramo-los. Chegamos a casa e começamos, com alguma avidez, a tirar a casca a um exemplar de cada fruto. São insípidos. É como se fossem o avesso do seu exterior (e são, qualquer um o pode confirmar); ou seja, é como se estivessem nos antípodas do rosto que oferecem, descarnados, exangues de sumo, sem ilustração de sabor. Que ninguém se iluda: os frutos só estão à vista depois de abertos.
Não apetecia ler mais do que este parágrafo. Adivinhou ao que vinha a parte sobrante do opúsculo. Uma lição de moralidade da primeira à última palavra, servida na bandeja enfática das metáforas, com requintes literários que mais não são do que artimanhas desprovidas de originalidade. Pergunta-se: mas quem se dá ao trabalho de pespegar lições nos outros (e mais, se as lições foram sobre moralidade)? Arrisca mais um naco de prosa. Avança umas páginas, ao acaso:
O homem não era extremoso marido, como lhe assentava na pública figura que construiu pacientemente. Talvez a imagem tenha sido fabricada pelos outros, por todos aqueles que, de uma ou de outra forma, o admiravam. O homem escudava-se nesse estatuto. Julgava ter um ancoradouro seguro no séquito, que não era de tamanho irrelevante. O estatuto compensaria os devaneios. Assim como assim – interiorizava, antes de caucionar o despreparo – alguém com estatuto superior devia ter privilégios. Devia-lhe ser dado fazer o que era vedado aos demais pela retórica dos costumes. Era só uma retórica e os costumes já não eram terreno fértil. Pelo que lhe era dado a saber, já ninguém respeitava os costumes. Já ninguém se ofendia com os desvios dos outros. O que faltava para dar o primeiro passo em falso? Dar o primeiro passo em falso. A certa altura, já tinha perdido a conta aos passos em falso. Foi descoberto. Num repente, o séquito desmobilizou. Já não sobrava ninguém. As pessoas evitavam-no, desviavam o olhar, sinalizando a vergonha que dele tinham. Proscrito, sobrava o arrependimento lógico. Já não vinha a tempo. Daí até ao final, foi uma decadência vertiginosa. Morreu sem que ninguém soubesse.
A segunda oportunidade não compensou. Aquela moralidade livresca era servil aos costumes. Interrogou-se: quem seria leitor de semelhante narrativa? Seria gente à procura das bissetrizes, carente de gurus para tudo-e-mais-alguma-coisa? Ou gente que, sabendo das bissetrizes, precisava de as reforçar, como quem firma os alicerces com medo de que a casa se estilhace ao primeiro vento tempestuoso? Não procurou a resposta. Não interessava.
Uns dias mais tarde, numa esplanada, viu como uma senhora da alta sociedade acenava com tom de reprovação, enquanto descaía numa carantonha de aflição, ao ler as páginas de uma revista que faz o apanhado das notícias da dita alta sociedade. Ao virar a página, conseguiu saber de que tratava a notícia:
Escritor famoso apanhado em adultério à luz do dia”, era o título – e era tudo o que conseguia ler, as letras gordas que se emprestavam ao título. O escritor era o autor do livro sem paradeiro encostado na lombada do sofá. 
Respirou fundo, encolheu-se no casaco (a brisa do entardecer tornara-se fria) e concluiu que o escritor, durante o processo da escrita daquele livro, andou a treinar para ser o que ele ensinara que não se podia ser. Pagou e encaminhou-se para casa. Sem saber a diferença entre o “pode ser” e o “deve ser”, tão do agrado dos catedráticos da moralidade. 

21.3.19

Poesia antes das refeições (outra liturgia)


Wordsong, “(Brave) Save My Soul”, in https://www.youtube.com/watch?v=z1lunZZrNwo
(Mote: o dia mundial da poesia)
Não eram preces, as lidas antes da refeição. O ritual diferia, contudo. Os comensais muniam-se de um poema, ou de umas estrofes, apenas, lidos antes de se deitarem à refeição. Não havia superstição, ou simbologia apelando ao misticismo; cuidavam assim da poesia pelo prazer que dela retiravam, pela fusão de palavras improváveis, porque – diziam – os poetas sabem fazer desenhos com as palavras, são autênticos prestidigitadores. Sabiam, por experiência própria, que uma refeição não precedida da leitura de um poema, ou apenas de um punhado de estrofes, não oferecia boa digestão. A poesia lida era o aperitivo que preparava os comensais para prolongarem os prazeres pela refeição dentro. 
O critério da escolha não tinha critério. Ou, por assim dizer, às vezes tinha. Havia dias com um significado próprio que exigia um poema a preceito. Um dia, o da apologia da vida, chamando à colação:
“As mãos amadurecem, sorvem todo o sol
a que cada corpo tem direito
apenas porque nasce.” (Armando Silva Carvalho) 
Ou, noutro dia em que a jugular do tempo sobressaltava os espíritos, 
“porém não há passado:
fora do tempo só existe a vida
uma luz imortal que o tempo mata.” (Gastão Cruz) 
Discutindo o sortilégio da cidade, um deles convocou o “Nevoeiro” de Eugénio de Andrade:
“Viera do rio pela mão duma criança.
A cidade é agora de porcelana branca.” 
Se sobra um tempo em que uma desilusão apetece arregimentar o pessimismo antropológico, sem anular o cinismo como compensação, dir-se-á: 
“Gosto das cebolas
e das pessoas.
Mas as pessoas
são como as cebolas
fazem chorar.” (Adília Lopes) 
De almas tão sensíveis não estranha serem agredidas pelo mundano da política e da religião, pelo que faz sentido delas escarnecer (sem ofensa a muitos vultos da cultura, por causa de seus vieses), afirmando, com Herberto Helder, 
“Cristo foi uma espécie de marxista-leninista mas com alguns escrúpulos extra-partidários.” 
Ou, no fio delgado, e paradoxal, entre atualidade e poesia, comungar da perplexidade de Luís Quintais:
“Está de joelhos, a Europa, e alguém
acaba de a degolar, alguém a está
degolando, e o inferno
é o fotograma voltando, voltando.” 
Sem esquecer o amor, o amor de que não se pode abdicar, acompanhando Rilke:
“Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma nota só.”
Outros dias eram anónimos na representação de signos, deixando a escolha do poema ao acaso. O não critério não era o critério mais fácil, todavia. Os comensais eram exigentes consigo mesmos. E porque se sabiam reciprocamente exigentes, não se descuidavam na escolha do poema, ou das simples estrofes que antecediam a refeição. Em véspera de uma refeição diurna num fim de semana, um dos comensais invocou um pesadelo absurdo para proclamar: 
“Voltar ao fim
pintar três vezes o sete:
ficar doido.” (Mário de Cesariny)
E não se perca a humildade de quem se reconhece imensamente imperfeito, metendo o espelho à frente dos olhos:
“Gosto dos outros
que têm defeitos
gosto dos outros
que não são perfeitos.” (Adília Lopes). 
E porque a poesia é também musicalidade, exaltar estes versos é exigência indeclinável: 
“pernoito no interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais e de bolor abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa.” (Al Berto)
A poesia é a refeição maior que se serve à alma e dela faz um extenso mar onde apetece navegar. Pois 
“nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música, 
e o silêncio por fora.” (Herberto Helder)

20.3.19

Que é feito do parêntesis? (short stories #103)


Nilüfer Yanya, “In Your Head”, in https://www.youtube.com/watch?v=fsxf541UI-8
          O umbilical ouvido não decai na desatenção. Todos os ruídos são colheita. Não te enganes: todos os ruídos são colheita. Como numa prosa, todas as palavras merecem igual atenção. Ou corres o risco de perder parte do sentido. E ao perderes parte do sentido, ficas com a história amputada; nem que seja um fragmento, uma pequena parcela perdida no ardil da desatenção. Ao olhar soerguem-se as braçadas ritmadas dos transeuntes. Parece que nadam em seu gesticular, os gestos como coreografia que empresta outro sentido, um sentido mais expressivo, às palavras que são ditas. Como se as palavras fossem digladiadas. Não adiantam os rostos seráficos que desafiam, em sua impassibilidade, os gestos excessivos. Dir-se-ia que embaciam a palavra dita, gestos assim coreografados. Alguém propõe: invente-se um modo de meter os gestos entre parêntesis. Os parênteses seriam a representação gráfica dos gestos que destronam o império das palavras. Para não serem ruído transfigurando as palavras em babugem. Mas as mãos, personificação dos vasos capilares que ecoam o tatear, não podem ser silenciadas neste teatro dos sentidos. Se os olhos estiverem fechados, as mãos são os nossos olhos – não te esqueças. Talvez seja possível às mãos decifrarem as palavras embainhadas nos ruídos que pontificam nas imediações. Não sejam contumazes as marés que orientam as palavras decantadas dos gestos – pois aos gestos deixa-se o seu lugar próprio, que será o dos mestres da coreografia. Em véspera de celebrações, ao palco só merece subir o altar onde se celebra o motivo da celebração. O resto é momentaneamente atirado para dentro de um largo parêntesis, à espera que uma constelação de parênteses se ofereça sucessivamente em seu palimpsesto. E perguntas: o que é feito da palavra que se emancipou do parêntesis? Terá a palavra sido metamorfoseada num parêntesis de si mesma, nele emaranhada? Tens de esperar pelo dia que se segue. E apurar, no rescaldo de todo o suor derramado, entre o restolho, o que ficou das palavras não silenciadas pelos parênteses. 

19.3.19

Suspeitos de costume (short stories #102)


The Chemical Brothers, “MAH”, in https://www.youtube.com/watch?v=XTBNONSR9F8
E não suspeitos do costume. Eram suspeitos de costume. Pelo ramo familiar do conservadorismo incorrigível. Só se guiavam pelo roteiro da rotina. O que tivesse sido arquivado no bornal das memórias e correspondesse a repetição atrás de repetição. Não se desviavam daí um centímetro. Porque o desconhecido era um corpo estranho que vinha ao seu regaço, e não queriam o regaço contaminado pelo desconhecimento. Houve alguém que os interpelou, se não sabiam que o conhecimento estava no exterior do acostumado. Não queriam saber. Estavam contentes com o conhecimento que lhes era dado a conhecer pelos seus costumes. E pouco se importavam se os interpelantes jocosamente encolhessem os ombros, insinuando, com o gesto, que era exíguo o mundo por onde se moviam. Era o seu mundo. Os seus costumes. Podiam aconselhar que cavalgassem no exterior dos limites, para serem como os descobridores de outrora, sem medo da aventura e sedentos de novos conhecimentos. Também não importava. A cada um a sua particular gesta. Que não os importunassem no conservadorismo oportuno para quem tem medo do que não sabe e não conhece. Era como se vivessem aprisionados num quarto dos fundos, lúgubre, sem exposição à luminosidade dos dias soalheiros ou das manhãs sombriamente enevoadas. Mas essa era a sua coutada. Onde se sentiam confortáveis. Que não lhes pedissem para extravasar os costumes. Fora tão custoso o processo de enquistamento dos costumes ancorados. Não lhes pedissem para romper a vocação conservadora. Não lhes pedissem; que também respeitam as margens por onde os demais transitam, fossem elas de que tamanho fossem. Depois escutaram uma interrogação perdida no anonimato da multidão: “O que vai ser o futuro?” Os suspeitos de costume não podiam ser recenseados na convenção. Não se importavam com o futuro e esperavam que o futuro não se incomodasse com eles. Por isso, quando um dos suspeitos de costume, em plena distração, corrigiu a interrogação (“O que vai ser do futuro”), um dos outros admoestou-o: “Nem uma coisa nem a outra nos interessam.” A menos que lhes garantissem, em antecipação do porvir, que esse tempo, se por eles vivido, seria igual aos costumes de que eram regedores.

18.3.19

Umas verdades inconvenientes (ou: contra a conversa de balneário)


Viagra Boys, “Just Like You”, in https://www.youtube.com/watch?v=xtmDOo5Ifx0
Contra a conversa de balneário: os varões inchados, que se medem pela testosterona e pelas proezas, sabe-se lá quantas vezes apenas fantasiadas, com o sexo oposto, são pasto abundante de preconceitos. E de parâmetros enviesados, que a eles, marialvas convictos, a variedade de parceiras sexuais, a promiscuidade, até, são pergaminhos de masculinidade, sem que a poliandria seja por eles caucionada, que aí já se trata de condenável adultério. 
(Para que conste: não se deduza da frase anterior um juízo de valor, muito menos de desvalor, acerca da poligamia (ou da poliandria, por extensão de raciocínio), nem sequer sobre a promiscuidade. É ao livre arbítrio dos envolvidos que cabem juízos de valor.) 
Estes machos, encerrados na sua coutada atávica, asneiam de tal modo que, a páginas tantas, fazem pensar se se trata de acefalia ou apenas de um intenso preconceito de que nem dão conta. Eles juram que são peritos na arte de ensinar os truques dos prazeres carnais às donzelas e menos donzelas que com eles acamam (ou noutro sítio qualquer). É uma questão de estatuto, o prolongamento da superioridade masculina com intermediação da ontologia sexual. Colocado na posição de ouvinte involuntário destas conversas improdutivas, apetece-me o papel de interrogador-mor. Por exemplo: eram vossas senhorias capazes de trocar prazeres carnais com uma senhora mais experimentada nestas artes – digamos –, daí retirando alguns ensinamentos que ampliem o conhecimento de vossas senhorias na matéria?
Vou adivinhar a resposta (correndo o risco inerente ao augúrio): “nem pensar!”, seria a resposta, exclamada, resoluta, indignada. Primeiro, eles é que são os mestres na arte da luxúria. Está-lhes tatuado no mais profundo do tutano, e a “natureza” diz que são os homens que devem conduzir a coreografia. Este rudimento inato não admite que um homem, um “homem que se preze”, seja ensinado nas artes da cama. Seria humilhante. Este é um terreno onde o homem, “o homem que se preze”, é professor. À mulher está destinado o papel de discípula. Segundo, não se admita a um bom varão (com a exceção adiante sufragada) ser presa de uma mulher bastante experimentada. Que essas são pouco recomendáveis, justamente pela elevada quilometragem que trazem a tiracolo. Quem quer trocar desejos carnais com uma mulher com semelhante experimentação? Tirando a exceção anunciada – estes homenzarrões também têm um lado lunar oculto que se abre a múltiplas experiências que, todavia, negam quando exibem a sua hermética doutrina sobre o assunto –, nenhum homem valente se presta à possibilidade de ser ensinado por uma mulher, no que à luxúria diz respeito.
Aposto bom dinheiro que a recusa exposta se legitima num argumento que estes machos exemplares não admitem em público: não querem que essas experimentadas mulheres lhes transmitam coisas diferentes, por temerem que essas coisas diferentes lhes foram transmitas por anteriores (ou contemporâneos, não interessa para o caso) parceiros. Seria como admitir que há homens ainda mais marialvas, o que é inaceitável para o épico ego em que estes homenzarrões se estribam. 
Correndo o risco de cair numa generalização (perigosas, como todas o são), outra aposta: estes são aqueles valentes machos que se ufanam das suas proezas sexuais, e do (dizem eles) rol interminável de “conquistas” – como se estivéssemos numa reserva cinegética e as mulheres fossem as presas a que dão caça; são aqueles que, no desempenho da função, estão imersos no profundo egoísmo de quem apenas cuida do seu prazer. Mal sabem que são desdenhados pelas “presas”, que deles não habilitam grandes referências. 

15.3.19

Contumácia


Mogwai, “Scrap”, in https://www.youtube.com/watch?v=zRRhmbrPMoY
No dorso de um livro de leis, uma anotação rebelde: “as leis, se existem, é porque são esquecidas.” 
O juiz discorda. Ufana-se de fazer aplicar as leis quando alguém as atropela. O réu, sentado no banco a preceito, discute a interpretação do crime de que vem acusado: ele não foi autor do que lhe imputam – e se por acaso for determinado que o foi (compensando um esquecimento inato), dirá que um punhado de atenuantes o favorecem na ilibação. A vítima está danada. Intui que tudo se encaminha para a expiação legal do réu. Acaba a concordar com a anotação à margem no livro de leis que ficou aparentemente perdido num banco do tribunal. 
As três pessoas vão para sítios diferentes, à saída do tribunal. Não adivinhavam que, nessa mesma noite, coincidiriam na amesendação no mesmo restaurante (em mesas diferentes). Não se falaram, apesar de se terem entreolhado. Cada um comentou, com as pessoas que os acompanhavam, a coincidente circunstância de horas antes estarem no mesmo lugar e em lugares diferentes.
Naquela noite, o juiz interiorizou a anotação que servia de rodapé ao livro de leis que alguém esquecera no tribunal. (Ele ficara zelador do livro, não fosse alguém reclamar a sua posse.) Sabia que há muita gente que assim pensa. Gente que vive à margem da lei e tira proveito, num risco constante que é o de ser apanhada em falso e cair nas malhas dos vigilantes da lei. Mas o juiz sabia que alguns figurões bem-postos, senhores de gordas fortunas, a condizer com a sua obesa estampa, senhores que circulam nos interstícios dos corredores do poder e o conseguem influenciar através de meios em débito dos mínimos de legalidade, tinham o condão de escapar às malhas da lei. (As histórias correm de boca em boca e, nos corredores onde fruem os rumores, era dado adquirido – por isso o juiz o sabia, como muita gente o sabia.) 
O juiz de igual modo sabia, como muitos o sabiam, que era infrutífero lançar o anzol a estes figurões, que, ato contínuo, vozes mais altas cuidavam de apagar os vestígios e de sacrificar a diligência dos ingénuos que acreditavam que podiam trazer os figurões perante a justiça. Este era o tempo e o lugar em que compensava (materialmente falando) ser contumaz profissional.

14.3.19

Para-quedas


Morphine, “Top Floor, Bottom Buzzer”, in https://www.youtube.com/watch?v=T-GRQ0TdOhY
          Juramos que não jurávamos. Dizias: “Dá azar”. Eu, que não me importava com sortilégios, que não acredito na sorte como não acredito no azar (para ser democrático e não tutelar discriminações fora de prazo), encolhi os ombros. Podíamos não jurar, absolutamente nada; não seria por medo do azar, que é uma parcelar arritmia dos modos em que se compõe o porvir. Seria apenas porque decidimos que as juras não têm serventia. Mais alto, fala a confiança. E quando bebemos do úbere da confiança, o vocabulário extingue as juras.
        Havia alturas em que sabíamos por perto o precipício. Quem nunca foi sobressaltado por um precipício? Precatamo-nos, que o precipício podia não ter viagem de regresso. E tal como prescindimos de juras, não queríamos que houvesse uma gramática dos arrependimentos. Eramos o que éramos e assumíamos essa identidade. Com o que ela trazia de bom e de mau, como se nos tivessem encomendado apóstolos da imperfeição da espécie. Não queríamos a covardia dos arrependimentos. Ao mesmo tempo, não transigíamos com o torpor que amacia as almas e as destina a hibernação. O equilíbrio era um desafio, difícil. No limiar do precipício, recusávamos um passo atrás: se o dessemos, julgar-nos-íamos timoratos – e, por dentro de uma audácia inesperada, não podíamos aceitar tamanha pusilanimidade. 
          O que faríamos? Quem sabe, jogávamos as cartas outra vez, à espera do jogo a preceito – à espera de que não fôssemos deitados no derradeiro centímetro antes do precipício. Não podíamos contar com essa longanimidade. O jogo estava distribuído e as cartas que tínhamos na mão eram as cartas oferecidas ao olhar. Para não termos o sono assaltado pelo vapor da covardia (algo que, inexplicavelmente, julgamos intolerável), sabíamos que tínhamos de dar um salto em frente, no vazio que preenchia o mapa do precipício. Não havia problema: já não recordávamos a precaução que fora nossa, a de nos equiparmos com para-quedas para a possibilidade de termos de dar um salto no vazio. Não nos lembrávamos de quando vieram os para-quedas à nossa posse. Também não importava. Podíamos avançar no precipício com o seguro de vida arqueado sobre as costas, garantido através dos arneses. 
      Aproveitamos o voo vagaroso com a ajuda do para-quedas. Era como se estivéssemos a mapear cada centímetro do solo sob os nossos corpos. Para memória futura. No plano inferior a que nos trouxe o precipício, deixamos os para-quedas ao acaso enquanto saboreávamos a paisagem bucólica. Eramos o que éramos e assumíamos essa identidade. Já sem o socorro dos para-quedas.

13.3.19

Dieta (short stories #101)


Radiohead, “Everything in Its Right Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=GnfPaaMR6Qc
          Desaprovava a gastronomia: considerava-a um capricho, dada a iníqua natureza de que a natureza humana era feita, e os alimentos antes vistos como mantimentos, uma exigência condizente com mínimos de sobrevivência. Esquecia-se de refeições. Não que não fosse assaltado pela fome, mas tinha outras distrações. Por cima de tudo, a posição filosófica contra a obrigação de comer. Não era estranha, a esta posição, a sensibilidade ambiental que prosperara. Não era de estranhar, a magreza impressionante. A pele macilenta, talvez sugerindo uma qualquer maleita induzida pelo défice de vitaminas e proteínas. A magreza não se justificava por imperativos estéticos, ou por estar na moda uma certa anorexia (pelo menos entre os manequins, o que também não jogava a favor da magreza, se este fosse o critério determinante). A dieta era espontânea. Não seguia um guião, nem fora prescrita por um perito da nutrição. Ocasionalmente, tinha de renovar o recheio do guarda-roupa. Se fosse de anotar estatísticas, talvez ficasse assustado com o gráfico do peso quando o gráfico lhe mostrasse como perdera peso. Não sendo o caso, usava o barómetro da roupa que, à passagem do tempo e com a persistente dieta infundida pela consciência, deixava de servir por ser excessiva. Um dia, o médico perguntou, com a habitual pose de paternalismo usada pelos médicos preocupados com os pacientes, se sentia algum mal-estar pela magreza. O médico notou a pele emaciada e torceu o nariz ao interpretar as análises sanguíneas. Ele ripostou, sem hesitar, que se sentia “fino como um alho”. O médico gostava de saber por que as pessoas usam estas expressões idiomáticas sem sentido, mas aquela não era a altura para indagar sobre a semântica. Prescreveu uma medicação (“por favor, não se esqueça de a tomar”) e aconselhou outra dieta (“ou, um dia destes, dá-lhe um ataque de fraqueza e vai ter de ser acamado”). Disse que sim, com a mesma convicção de um mentiroso relapso que não admite que a mentira que conta seja sequer mentira. A posição filosófica sobre a alimentação não se compadecia com as minudências da medicina. Sem dar conta, a vida ficava para segundo plano. 

12.3.19

Uma defesa minimalista da Europa


Cat Power, “Lived in Bars” (live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=IcaqpzVXHDo
No domingo, António Barreto, em artigo de opinião no P2do Público(“Uma Europa longe demais”), discorre sobre a crise existencial que ameaça a Europa às portas da terceira década do século XXI. Depois de uma resumida historiografia em que mostra as diferentes Europas segundo os diferentes interesses (e interpretações) e os sucessos por ela registados, Barreto parte em busca dos limites que estão a colocar a Europa no limiar do precipício.
A Europa já ofereceu tanto que agora já não tem mais nada de válido para oferecer. Os cidadãos já receberam tanto da Europa que nem sequer dão conta dos valores que outrora foram sonegados e pelos quais foi preciso derramar muito sangue para serem firmados. O desinteresse da população, com expressão no crescimento da abstenção, e o aumento do voto de protesto (nos partidos nacionalistas, populistas e radicais), parecem hipotecar a Europa. O cimento da Europa está-se a despedaçar, como acontece com as pontes e viadutos sem manutenção, com vestígios da cofragem entre a muralha de betão, sinalizando o perigo de desmoronamento. Nas palavras de Barreto, “[o] que é mais confrangedor é que a Europa não tem nada para oferecer, a não ser o que é e o que está. Oferecer aos cidadãos o que já têm, paz, liberdade e livre circulação, não parece especialmente excitante. Mobilizar os eleitores para a democracia que têm há décadas também não é emocionante. Olha-se para a Europa e não se vê o que nos possa dar de novo. Mais do mesmo é receita para desastre ou abstenção. E dá o flanco aos seus inimigos.”
Parto da asserção “[o] que é mais confrangedor é que a Europa não tem nada para oferecer, a não ser o que é e o que está.” Intuo uma ilação oposta à de Barreto. Eu diria: justamente – o que a Europa tem a oferecer é “o que é e o que está”, com o mérito de ser toda uma cosmovisão que, a julgar pelos regimes alternativos, e descontando todas as fragilidades da União, é o que a distingue. É pouco o que a Europa oferece e está tão consolidado que parece não ter valimento? Poder-se-ia ensaiar o registo contrafactual: e se a Europa perdesse o que tem, com que ficariam os cidadãos? O que seria, neste momento e com as circunstâncias conhecidas, um cenário de “não Europa?” O que seria dos valores legados pela Europa? Será difícil pressentir que a Europa da barbárie estaria ao dobrar da esquina, numa involução civilizacional?
Pode-se contrapor que, mesmo assim, é pouco para “mobilizar os eleitores” (citando Barreto). Parece indiscutível, a crer no gradual desinteresse e no alheamento pela política, de que a abstenção é só um sintoma. Em oposição ao pessimismo de Barreto, ofereço uma visão otimista. O legado da Europa não é de somenos importância. É todo um lastro que serve para aguentar as tempestades que têm assolado a Europa. Sem este cimento, mesmo que módico para as niilistas exigências da atualidade, não teria a Europa naufragado, mergulhada no vómito do seu próprio apocalipse? 
Talvez seja um otimismo minimalista, concedo. Uma defesa da Europa, ela própria, minimalista, porque gravitando no que foi garantido e que parece ser desprezado pelos cidadãos refratários e pelos eleitores atraídos por radicalismos que abjuram a ideia cosmopolita da Europa. E por análises catastróficas que sublimam o acessório (as políticas erradas) em detrimento do essencial (os valores imanentes à ideia de Europa). Eu digo que é melhor do que a alternativa. Por várias que sejam as fragilidades da União Europeia, é melhor o mal menor que é tê-la.

11.3.19

O cálice mais alto


Richard Hawley, “The Ocean”, in https://www.youtube.com/watch?v=wYoNrmJe9LA
Dizia-se: corremos para além da loucura, nos escaninhos embalsamados na memória, contra a tirania da sanidade, contra o pulcro avizinhar do ontem deslimitado. Não se dizia que éramos penhores dos hábitos amaciados no formol da má formosura. Mas não importavam os dizeres alheios. Se queríamos um bodo às artes, tínhamos o bodo às artes. Se queríamos uma peregrinação ao ancestral viver perdido algures entre montanhas, tínhamos a peregrinação ao ancestral viver perdido algures entre montanhas. Se queríamos perder a cabeça por uma excentricidade qualquer, perdíamos a cabeça por uma excentricidade qualquer (desde que tirada da imersão, sem qualquer probabilidade antes de ser dela remida). 
Eram nossos os cálices que empunhávamos a cada sagração que calhasse no sortilégio do desejo. Podíamos correr contra a maresia que se insinuava entre os poros da janela. Podíamos dizer que a lua era diurna e a lua transfigurava-se num ser celeste com vida diurna. Podíamos ensaiar um poema a duas mãos e o poema entretecia-se no vagar do tempo só nosso. Entre duas funções, erguíamos o cálice. Era sempre o cálice mais alto. Nele, o néctar que entronizava a nossa distinta maneira de ser. 
Eramos, talvez, ufanos na proclamação: um módico de vaidade não vinha a destempo, pois estávamos convencidos da nossa singularidade. Assim como assim, não havia mais ninguém como nós (por mero desconhecimento dos outros, que manifestamente não importavam). Não havia outro lugar como o nosso, transferido para a semântica do éden. O olhar arrebatado tecia-se na vulgata do tempo amarelecido pela usura. Era quando atiçávamos o cálice ao mais alto que os braços podiam subir – e, garantimos, era alto, tão alto que víamos o Evereste como se estivéssemos debruçados sobre um miradouro. 
Nunca tínhamos as coisas como derradeiras. A matéria fluída dava sentido ao sentido da vida. A vontade extasiante conseguia aquilo que o lugar-comum, e as pessoas mais modestas, chamam milagre. Deixávamos um perfume ímpar nos lugares a que íamos. Sabendo da impossibilidade dos pressentimentos, atirávamo-nos com a coragem de um estouvado ao caudal onde se congeminavam as possibilidades. Acreditávamos em nós. Nos lugares onde fôramos. Nos lugares que sabíamos serem promissória a resgatar quando nos aprouvesse. Os palcos sem gente eram multidão com a nossa presença. Pois era dessa presença que estávamos carecidos, como droga boa que não cessa de alimentar o vício de nós.
Como podíamos recusar os sucessivos cálices?  

8.3.19

A escultura de Sísifo atingiu a cumeeira (short stories #100)


Shame, “Friction” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=PiF6nlZcjtE
          Um compasso de espera, à espera da alvorada e da claridade quimérica. O silêncio só quebrado pelo murmúrio do mar cansado e por um ou outro pássaro que volteia na sagração da manhã. Um dia que se repete. Dizem os desenganados: todos os dias são uma mera repetição, um monótono monólogo em que somos manada. O aroma da abdicação não combina com a promissora alvorada – mas, afinal, as manhãs são todas promissoras, dizem, menos quando se seguem a um sono sobressaltado. Há empreitadas que continuam em fila de espera. Para gáudio do sossego interior, segreda para si mesmo que hão de continuar em fila de espera. E isso é um conforto. O que seria se um dia acordasse e não fosse capaz de inventariar uma única empreitada em espera? Teria capacidade para inventar uma empreitada no dealbar do dia? E, caso não fosse capaz, o que seria do dia assim vazio? Não queria que o mito de Sísifo fosse exposto ao contrabando. Não queria que a perseverante estátua de Sísifo conseguisse atingir a cumeada, depositando, enfim, a volumosa pedra que empurrou montanha acima. Não queria: temia que o contrabando do mito de Sísifo pudesse representar o inverno da vida, já sem mais nada por esperar – ou por capitulação das empreitadas em fila de espera, que assim ficariam destinadas ao oblívio; ou porque convencionara, ao menos que fosse por uma cartada de oportunidade, que a agenda das empreitadas era um caderno em branco no qual já não tinha serventia inscrever o que fosse. Mas, o inverno da vida significa a decadência irremediável? Sísifo não teria resposta. Sabia que depois do inverno vem a primavera. A reparação da aridez invernal, uma centelha a desatar os nós em que se consumiu a hibernação. E concluiu que a primavera consequente ao inverno é a metáfora de Sísifo (porventura contrabandeada no seu sentido). A escultura de Sísifo derrotou as forças incalculáveis que antes a tinham derrotado tantas vezes. Isso aconteceu no dia em que a primavera depôs o inverno. Esta é a gramática dos dias felizes.

7.3.19

Para que serve o revivalismo?


The The, “This is the Day” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=HXaEAoRUkfE
Mote: “All the money in the world couldn’t buy back those days”, The The, “This is the Day”.
O revivalismo só acomete gente de meia-idade e gente idosa? Serão as faixas etárias mais propensas. Mas o revivalismo não é seu exclusivo. Há gente mais nova, na ampla faixa que medeia a adolescência e a meia-idade, que também descai para o revivalismo. Admita-se que, com o avançar da idade, aumenta a probabilidade do revivalismo; é a cobrança da idade que se traduz na gramática do tempo. E quanto mais o tempo corre à frente, mais as pessoas querem resgatar recordações que servem para turvar o tempo presente (e, talvez, adiar o futuro).
Devia o revivalismo ser proibido? Que não seja erradamente entendido um opúsculo sobre a inutilidade do revivalismo com uma proposta para a sua liquidação do roteiro das almas. Se não se vê serventia em enxertar o tempo presente com memórias, que ninguém tenha a pretensão de estender este comportamento aos demais. Cada qual faz com o tempo que tem entre mãos (em qualquer das suas dimensões) o que lhe aprouver.
Feita a advertência, o que sobra da prosa ensaia uma justificação da inutilidade do revivalismo. Ele encontra-se de diversos modos: em fotografias que trazem um naco do passado até ao momento em que são revistas; na música, no cinema, num lugar revisitado, ecoando recordações; nas pontes entretecidas por um sonho, na linguagem codificada que, num lampejo de lucidez, se decifra em ligação com um episódio passado. Muitas vezes, a visita de um músico que se julgava reformado tem esta intenção. Muito para além da questão estética, está em causa verter um raio de luz nas memórias que quadram com o artista na altura em que ele era, como a audiência o era, novo. É como se fosse possível viajar no tempo e aterrar naquele tempo em que o músico era novo – e a audiência também.
Este é um revivalismo que causa dores excruciantes, em vez de repristinar as memórias em forma de recompensa. Mau grado elas assomem à superfície, desalfandegadas da hibernação, a retribuição é ilusória. Serve para mostrar que os tempos de outrora não voltam – não podem voltar – a ser vividos. O revivalismo resgata memórias que só aparentemente são o rastilho da rejuvenescência. Não é possível, a rejuvenescência. O revivalismo encerra o paradoxo de si mesmo: o que sobra é a melancolia ao cabo do estado hipnótico que foi palco para o resgate das memórias que o músico evoca. 
O revivalismo é ainda penalizador por ultrajar os acontecimentos que a memória procura associar ao músico revivido. Esses acontecimentos são irrepetíveis. Deviam ser honrados como tal, para não perderem o seu zéfiro. Avivá-los implica admitir o pesar que se arqueia sobre a vida presente, o que não abona em favor dos laudatórios do revivalismo. Como se eles pressentissem a necessidade do exílio no passado. É o que se retira do verso que serve de mote a esta prosa (sem cair na contradição de recuperar uma banda que soa...a revivalismo).

6.3.19

3D (short stories #99)


Karen O and Danger Mouse, “Woman”, in https://www.youtube.com/watch?v=W4yhzATxyz0
         Das páginas do livro, o entorpecente improvável: imagens que se leem atiradas ao olhar em realidade 3D. É como se ouvíssemos as palavras ditas nos diálogos, conseguíssemos ler o rigor das rugas de um idoso sentado no banco do jardim, a ferrugem que tomou conta de um pilar do banco do jardim, às mãos viesse parar uma folha caduca errando no vento outonal. Como se os lábios da mulher melancólica subissem ao rosto e os sentíssemos, carnudos, depositando um beijo. Ou como se soubéssemos do tamanho da maré e o perfume da maré-baixa, devolvendo o aroma das algas sazonalmente despojadas no areal. Podia até acontecer que fossemos capazes de desenhar a exultação do jovem estroina quando mergulha na boémia, sitiado pelo efeito de substâncias ilícitas e com ele conseguíssemos desenhar a caótica coreografia. Ou podia ser que fôssemos capazes de intervir no diálogo entre dois homens penhores da angústia, enquanto degustavam mecanicamente a refeição no intervalo para o almoço. Seríamos adestrados na arte de trazer aos sentidos os sentidos decantados nas páginas dos livros e, sem darmos conta, estávamos por dentro do enredo, narradores complementares ou acrescentos de personagens à narrativa. De caneta na mão, seríamos mais do que meros narradores ou personagens: seríamos a adulteração da autoria, reescrevendo o enredo à medida que as imagens tridimensionais assomassem aos sentidos. Às escuras, escrevendo sem critério, a não ser o cerdoso papiro legado para memória futura. Sabendo, contudo, que o papiro não sairia de casa, reservado ao íntimo exercício do palimpsesto vociferado pelo impulso volitivo dos sentidos alimentados pelas imagens 3D. Haveria instâncias arriscadas no exercício. Páginas de livros a evitar, sob pena de a simbiose dos sentidos (próprios e os importados das páginas lidas) ser o alfobre de desprazeres, dores, precipícios no limiar da morte, dependências várias. Experiências, talvez. A não ser que a simbiose se adestrasse de tal arte que, a páginas tantas, já não saberíamos o que era safra das páginas e o imaginário transfigurado em realidade mercê da impressividade 3D. Momento em que emissários da ponderação, no altar sufragando os limites do possível, aconselhariam a não sabermos deste estado imersivo e, ato contínuo, recomendariam a não leitura. Venceria o desafio, mesmo correndo riscos inomináveis: o risco traz a recompensa da literatura.

5.3.19

Salto à vara


Orelha Negra, “A Cura”, in https://www.youtube.com/watch?v=S8id5ZuolFE
Moral da história? Não há moral da história. Não há sequer história, como pode haver uma moral de uma história que não existe? E se existisse: teria de haver uma moral atuante? Faz parte das convenções: quando alguém conta uma história não é um narrador desinteressado, limitado à imparcialidade desse papel; é um agente interessado que procura encontrar os rudimentos de uma moral nas entrelinhas da história narrada. 
As histórias são instrumentais. Estão ao serviço da moral prosseguida. O seu lugar, que devia ser centrípeto, é adulterado. É difícil congeminar histórias que se autonomizem de um segundo sentido nelas embebido. Corresponde à desvalorização da narrativa e do enredo que a alicerça. Porque o narrador (quando é também autor) articula com um certo sentido moral, manobrando nos interstícios da narrativa para chegar ao objetivo moral pretendido. Pode-o ser pela afirmação de uma mensagem, uma moral que se distingue pela construtiva (mesmo que seja destrutiva na sua ação): é construtiva, porque o enredo se entretece na suposição de vir a desaguar numa moral afirmada. Mas também o pode ser pela negativa, a desconstrução de um etos, movendo a história através de uns corredores estreitos que terminam num epílogo rejeitado pela moral que se pretende afirmar. 
As histórias deviam ser exímias praticantes do salto à vara. Para poderem ultrapassar, e com suficiente margem de segurança, as tentações da moralidade que se abeirem das histórias. Para não as tornar reféns de imperativos de moralidade. Até porque a moral não é um valor medido pela sua singularidade, por ser permeável ao subjetivismo. Poder-se-á contrapor: restringir a associação de padrões morais a histórias é totalitário, uma possível castração de quem tece o corpo de uma história – e, por essa medida, recusável. Admita-se que sim. Admita-se, do mesmo modo, que uma moral arregimentada para coroar uma história pode provocar o mesmo efeito totalitário no destinatário da história, exposto a uma (na sua maneira de ver) inaceitável moral ungida pelo narrador da história. Não é que sejam danos de grande monta: uma moral vertida numa história que se amotine contra as preferências do leitor é uma moral que tem um efeito pedagógico: o leitor coloca-se nos antípodas dessa moral, construindo (ou reforçando) aqueles que julga serem os seus padrões. Se é que isso é uma prioridade. 
Uma história saltando à vara sobre os esteios morais encerra uma pureza que não se subordina a qualquer orientação moral. Dir-se-á: é uma histórica moralmente assética. E mais difícil de produzir, por essa razão. Todavia, ao ser moralmente assética não deixa de conter a sua própria moralidade: uma posição no sentido da não moralidade acaba por confluir numa posição moral. O que reforça a impossibilidade de desligar as histórias de um certo sentido moral.

4.3.19

Pisco sour


Einstürzende Neubauten, “Ich Warte”, in https://www.youtube.com/watch?v=hQDzt1Phbi4
O cotovelo pousado na mesa, a fazer de bengaleiro da cabeça pendida sobre a mão. Parece cansado. Absorto. À sua frente, ela dirige o olhar para a janela, dedilhando a paisagem sobranceira ao mar. Não falam. Esperam pela refeição depois de terem feito o pedido. Ele beberica um pouco de água – não lhe apetece vinho, não sabe porquê, não lhe apetece. 
Ela desvia o olhar do postigo que oferece um módico da paisagem catatónica; estuda as outras pessoas que amesendam no restaurante. Quase todos falam idiomas estrangeiros. Um sinal dos tempos. Dantes, quando a cidade estava amuralhada pelo seu rosto granítico, plúmbeo, repelia os turistas. Agora as coisas puseram-se diferentes: será do aquecimento global (porventura), o cinzentismo da cidade foi substituído pela constelação de cores que resplandecem por ação do sol que predomina. Não sabe ao certo o que ajuizar sobre a maré de turistas. Também não interessa. Eles continuarão a vir, emprestando à cidade uma paleta de cores cosmopolita. Independentemente do que ela achar.
Subitamente, apetecia-lhe um cigarro. Ele já não fumava há uma hora. Uma eternidade. Talvez fosse do apetite que era voraz, pois já não comia desde o pequeno-almoço (não houvera tempo para o almoço, que o exigente trabalho naquele dia o convocara para empreitadas urgentes – e ficava sempre bem, nestes tempos modernos em que fica bem as pessoas orgulharem-se que deixam quase todo o tempo no trabalho). Agarrou-se a um naco de broa. De seguida, atirou-se a dois canapés que faziam as vezes de pré-entrada. Ah, se ao menos esta modernidade não tivesse instituído as proibições higiénicas e ainda fosse possível fumar nos restaurantes! Procurou anestesiar os apetites com a distração do olhar. À falta de assunto, e continuando emudecidos, dava alvíssaras por um passatempo que disfarçasse a perenidade do tempo. Na mesa contígua estava sentada uma mulher lúbrica, com as curvas do corpo excessivamente delineadas por um vestido apertado. Teve de desvair o olhar. Não queria ser apanhado em falso. E o acompanhante daquela mulher exibia ciúme, fulminando-o com um olhar ao notar que a sua companhia estava sob observação desde a mesa vizinha.
Ela conseguiu perceber o deslize. Não deu importância. Debateu-se sobre a irrelevância do acontecido. Era mesmo para não dar importância porque não tinha importância (os instintos carnais são transversais aos sexos, numa confissão implícita)? Ou não tinha importância porque sentia que os laços se esbatiam? O mar calmo, na noite ausente de vento, ajudava a descompor as ideias. A música de fundo, aquele jazz reinterpretado para almas orelhudas, bem ao jeito da soporífera música de elevadores, não ajudava. A demora começava a ser insuportável. Ou talvez fosse apenas a mudez e os palcos diferentes em que se moviam que davam a impressão de o tempo se alongar além da sua medida. 
Ele interpelou o empregado de mesa. Ela pressentiu que ele fosse perguntar se o pedido demorava. Enganou-se. Ele pediu um pisco sour. Passou da água para o pisco sour! Ela não sabia se fora por acaso, ou um sinal através da bebida. De como estava amargo, a ficar fora de prazo. Indiferente aos pensamentos que vogavam, provou o pisco sour. Disse: “que zurrapa! Puseram limão em vez de lima. Onde está o sour desta bebida?” Ela levantou brevemente o olhar, fitando-o com algum desprezo. Apetecia-lhe responder: “a amargura da bebida foi dissolvida pela tua própria amargura.” 
Ficou em silêncio, a admirar a suave coreografia das ondas iluminadas pelos lampiões da avenida. Adiando-se.

1.3.19

Acelerador a fundo (short stories #98)


Beirut, “Varieties of Exile” (live at Music Hall Williamsburg), in https://www.youtube.com/watch?v=JNAm1t63vCI
          No apeadeiro deserto, o comboio de alta velocidade passa a alta velocidade. Parece um breve sismo, despenteando as terras que se sobressaltam com o troar veloz. “É desta têmpera que somos feitos”, atiras, sem recuares o olhar no vendaval detonado pelo comboio. “Como assim?”, replico, fazendo de conta que não sei ao que vou. “Neste vulgar mundo, em que quase tudo se congemina no adiamento, ou no arrastamento do tempo só para não se travar encontro com o sacrifício das empreitadas, não nos intimidamos. Queremos sorver até ao tutano todos os segundos oferecidos pelos relógios a que não damos atenção.” Inspiro, profundamente. As folhas das árvores ainda dançam sob o efeito do breve vendaval arquitetado pelo comboio de alta velocidade. Interiorizo as tuas palavras. “Tens razão. Connosco, o acelerador vai a fundo. Não diremos que vai sempre a fundo, porque também somos corredores de fundo e sabemos que, às vezes, temos de abrandar para reter nas mãos quimeras que não podemos desperdiçar.” Sem demora, acrescentas: “É disso que estou a falar. Mesmo nos interstícios, quando dizes que abrandamos, fazemo-lo à nossa maneira, de acelerador a fundo. Não queremos ser apanhados em falso por um qualquer demónio que pressinta a distorção do tempo.” Outro comboio, que não é de alta velocidade, estaciona no apeadeiro. Vagarosamente. Alguns passageiros fazem transbordo. Ninguém entrou nas carruagens – só lá estávamos nós. Ao assobio do funcionário do apeadeiro, o comboio inicia a marcha. Vagarosamente. Rangendo por todos os lados. Movendo-se a custo. “É disto que estou a falar”, repetiste, tossicando pelo meio, “nós somos os antípodas deste comboio. Sabemos que somos corredores de fundo, mas recusamos a ideia da capitulação. Somos, ao mesmo tempo, corredores de fundo e comboios de alta velocidade, quase sempre com o acelerador a fundo. Até quando sonhamos sonhos uníssonos temos o acelerador a fundo.” A voz emudeceu. Já não tínhamos nada para fazer no apeadeiro. Queríamos saber como era ser testemunha de um comboio de alta velocidade quando esvoaça, a duzentos e vinte quilómetros à hora, de acelerador a fundo, através de um apeadeiro.