7.2.20

A casa das limas


Hot Chip, “Positive”, in https://www.youtube.com/watch?v=cjirvFpuLBM
Amanheceu. Saio para saber do fresco da manhã. A ligeira névoa entranha-se nos ossos. Não me recordo dos sonhos que habitaram o sono. Dobro o esforço. Em vão. Não será por acaso: os sonhos furtivos, que escapam ao escrutínio dos sentidos, não querem ser inventariados. É melhor preparar o pequeno-almoço. 
Na televisão, um homem que transporta um ar carrancudo, com um séquito nas suas costas que se põe a jeito das câmaras de filmar, vocifera qualquer coisa. Aparenta ser vagamente um ministro, tão estadista é a pose que, contudo, não quadra com o destempero da fala. Dele há de ser o protesto que destrata um contratempo qualquer que se insubordinou contra a ação virtuosa do governo de que é porta-voz. Só falta uma onomatopeia a gravitar sobre o aparente e possivelmente mesmo ministro, lavrando protesto outro contra as injustiças que se abatem sobre tão virtuoso governo. 
O dia soalheiro não capitula, apesar do presságio em sentido contrário do boletim meteorológico. As crianças puderam ir para a orla do rio, entregando-se às ações da sua especialidade, a lúdica safra de que são criativas intérpretes. Contemplo as correrias, a algazarra, as forças que não abdicam. Admiro-as. A melancolia ainda não entrou no seu vocabulário. 
Entardece. É a metáfora perfeita da existência. A claridade desmaia nos corpos, que se aprontam para a decadência do dia. Outros foram os tempos em que a noite era a ignição do reavivar do dia, quase como se houvesse dois dias por dentro do mesmo dia. Acendo a lareira, que o frio já toma conta dos ossos. No meio da desordem da sala, retiro um livro ao acaso do lugar onde estão empilhados. Abro uma página, também ao acaso. Sob o crepitar da lareira, leio em voz alta as breves estrofes que são a pálida mancha da página: 
“Saiu do fogo intemporal
vagamente lembrado
o ruído desamestrado da fala
a violenta despedida do dia
irrepetível.”
A noite faz o seu caminho e o sono demora-se. As considerações viram-se do avesso, o pensamento convoca o inenarrável como ardil que estabeleça o sono. Algo persevera, sobrepondo-se ao sono. Já lá vai quase um dia inteiro acordado. Talvez tenha sido pelo desprendimento do dia. Agora, a fatura da demorada levitação que atravessou o dia exige a insónia. E esta insinua-se em todos os poros do corpo, numa luta, silenciosa e desenfreada, contra a vontade. 
Vou ao jardim colher umas limas e preparar uma infusão. Pode ser que o sono tenha convocatória.

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