25.2.20

Quem leva o arroz para o restaurante?


Pixies, “Gouge Away” (6 Music Live Room), in https://www.youtube.com/watch?v=7aSbf406xaw
Miguel Esteves Cardoso, Publico, 24.02.20, p. 7.
Quando alguém vai a um restaurante, aceita tacitamente a integralidade do cardápio proposto pelo restaurante, ou levar partes de refeições que o levem a abdicar da integralidade do cardápio é apenas uma manifestação da sua liberdade individual? 
Alguém pode pensar: “não há melhor arroz do que o meu”. E não hesita em preparar uma dose desse arroz, acondicionando-a devidamente, pedindo ao empregado de mesa para o aquecer em micro-ondas (ou em banho-maria) a tempo da restante refeição que for escolhida. O que dirá o gerente do restaurante? Aceitará um ato que, visto do exterior, parece uma bizarria? Se o restaurante se encher de brios, pode considerar ofensivo que o cliente dispense o arroz meticulosamente preparado pelo chefe. Podem colidir duas formas diferentes de liberdade individual: a do utente do restaurante e a do restaurante (descontando o facto de não se considerar liberdade individual, pois um restaurante é uma empresa). Não pode o restaurante alegar que a sua ementa é um todo, um ato de criação do chefe contratado, e que o cliente que decida amesendar neste restaurante tem de aceitar a integralidade da ementa? Não pode estar a ser hipotecada a liberdade criativa do chefe do restaurante? Como decidir um possível conflito entre o restaurante e o cliente: o restaurante tem o direito de recusar o cliente se ele insistir em comer o seu próprio arroz?
Não é procedimento habitual um empregado de mesa ser confrontado com o pedido do cliente que traz o seu próprio arroz de casa. Não se ordene o problema pelo prisma da “normalidade”. Em todo o caso, é insólito o comportamento de um cliente que leva e o seu arroz para o restaurante. Mudando de palco e tentando a analogia: se esta pessoa é convidada para jantar em casa de um amigo ou de um familiar, também leva o seu arroz confecionado de forma inigualável? Não pode o anfitrião sentir-se atingido na sua personalidade, entendendo que o convidado não confia nos seus dotes gastronómicos? Se é tanta a frontalidade do convidado, por que não a usou para recusar o convite do anfitrião, argumentando que em sua casa se come um arroz medíocre?
No plano das hipóteses, também se pode equacionar um restaurante que não tenha tantos pergaminhos, sem o gerente considerar lesivo da reputação do estabelecimento se um cliente carregar o seu bornal com o arroz preparado de véspera e em sua casa. Este gerente verá no episódio uma oportunidade de negócio: “aviso o senhor que não fazemos desconto nos pratos constantes da ementa por abdicar do arroz que os acompanhar.” 
Afinal, ele há gente tão generosa que, não prescindindo do seu pantagruélico arroz, se predispõe para engordar os lucros dos restaurantes. São os maiores adeptos do capitalismo. Do capitalismo que aproveita aos outros. Uma espécie de filantropia invertida (pois que se considere que os restaurantes possuem melhor condição económica do que o cliente que trouxer o arroz de casa).

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