Destroyer, “Cue Synthesizer”, in https://www.youtube.com/watch?v=06ZLNLz2yGI
Deve haver gente assim: iconoclastas das emboscadas, fugitivos da consciência, fautores das ignomínias que se praticam, avulsamente. Gente meã, proveniente das coutadas onde é nauseabundo o ar que se respira, onde o chão se enodoa com o som das suas palavras. Povoam-se entre os demais, disfarçados. Aparentam ser como os demais, gente vulgar. Não sendo distinguíveis, insinuam-se entre os que deles querem mal. Não há como saber quem são. Os venefícios só se descobrem depois do ato cometido. Como é habitual acontecer com as demais coisas.
A transfiguração esbate-se, a certo ponto. Os azimutes foram reinventados. Há uma tremenda confusão acerca dos pontos cardeais. As mãos dão-se e com o contágio as almas dão o flanco à metamorfose do que aprenderam a ser. Outros há que reagem com virulência às iniquidades que os vitimam. Preferem engrossar o exército dos fautores dessas aleivosias. Já que não as podem sanar na sua pele cicatrizada, já que não as podem cercear, transitam para a trincheira dos que lhes impuseram um mal. Conseguem escapar a males vindouros: eles não costumam ser cometidos sobre os que pertencem à confraria. Mas mantêm uma desconfiança metódica.
Banaliza-se o que dantes era proscrito. Hierarquiza-se com a batuta do telúrico contrabando das coisas. O olhar decanta-se noutras porosidades, recusando estalões antigos, agora entendidos como heresias que previnem os tempos vindouros. Dizem: os tempos mudaram, as pessoas mudaram, os comportamentos mudaram – sem admitirem que há na enunciação qualquer causalidade. O que era penhor diluiu-se na centelha baça da clepsidra que comanda a boca do tempo. Dirão, os penhorados pela saudade dos tempos vencidos, que os juros de mora adiam-se pela impossibilidade do lodo em que habitam os tutores destes tempos novos.
São pirómanos congratulados. Ateiam os incêndios com a sua boca pútrida e os demais, cedendo à bulimia do espírito, aplaudem. Foram em hibernação para o lugar onde campeia a contrafação das palavras. As palavras deixaram de corresponder aos sentidos. Capitularam, sem darem conta. Tornaram-se um dos viscosos intérpretes das formalidades que selam a nova cartografia em que se movimentam as pessoas. No pórtico de um templo criado a preceito, é possível ler o mote:
“Não renegues o que leva ao cosmos. Até o que julgares indigno de ti.”
Não cuidem os hermeneutas de dar a saber estas palavras como o manual de um conservador das almas que se insurge contra a sua adulteração. Cada alma é soberana. O resto, deixa-se à fermentação do restolho em que vagarosamente se consomem as atribuições dos diferentes tempos, dos diferentes modos. Tema-se que possam as coordenadas ser adulteradas ao ponto de tudo se esvair num ténue fio que acaba em nada, e do promontório já não seja possível determinar o que é um horizonte.
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