13.2.20

O testamento sem herdeiros (short stories #196)


Nils Frahm, “Harm Hymn”, in https://www.youtube.com/watch?v=5GcivAhZ4qk
          Parece não ter remédio. Os legados perdem-se na vetusta sombra onde as memórias se apagam. Sobra o silêncio, a matéria-prima do esquecimento. Dizem, os iludidos, que somos todos matéria perene. Dizem que não somos apagados das memórias. Não há nada mais errado. Quantas vezes somos apagados das memórias e ainda não foi encomendado o nosso funeral? Depois, dissipa-se a presença que de nós houve nos lugares que foram sendo inventário corrente. Não se ouve a fala. Não se prendem as lágrimas com o caldear que fora nossa marca impressiva. Podem restar fotografias, palavras emolduradas, lembranças que vogam na memória dos outros. Não chega para selar um testamento da memória. Falta a substância, o corpóreo sentir da pessoa que deixou de pertencer aos vivos, a sua fala. Os iludidos pressentem as almas, declaram-nas imorredoiras. Atestam que é no húmus da alma que reside o testamento da pessoa que o deixou para memória futura. Um contratempo insurge-se contra a teoria: o testamentário não pode ser testemunha dessas memórias que são detidas por quem o evoca. Ficará um testamento, mesmo que tenha formalização, mas cuida apenas dos aspetos materiais. O apagamento da memória dilui os ecos do testamento outro que o legatário tenha deixado. Não é apoquentação suficiente, porém. Depois do falecimento, o corpo é apenas um inerte, desligado o pensamento, extintos os sentimentos. A ninguém devia importar este testamento. O seu fautor cuida de uma liberalidade que aproveita aos que dela beneficiam. Mesmo que a correspondência se esbata com o tempo que atravessa o calendário. É uma generosidade que se esgota no ato em si, sem outra repercussão. No fim da linha, o que se pressente é o vazio. O oblívio. A morte é o vaticínio do esquecimento. O testamento, se tanta for a pervicácia, é um documento em vão. Os herdeiros podem ter os seus nomes escritos, mas não passa de uma formalidade.

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