17.2.20

Arrematação


Handsome Modelling Boy, “The Truth”, in https://www.youtube.com/watch?v=-HW7nj-GUZY
You can´t hide from the truth, because the truth is all there is”. 
Handsome Modelling Boy, “The Truth
Ao olhar para uma câmara fotográfica Nikon, não se pode pretender que seja da marca Canon. Lembrava-se sempre desta frase do avô, que ficou no seu arquivo como adágio. Em vez do dia nebuloso, podia pretender um dia soalheiro. Mas o dia nebuloso é que ficou emoldurado. O que fazer? Contemplar o dia nebuloso. Forçar sobre ele um poema. Um poema apologético do dia nebuloso. É como ter em mãos a máquina fotográfica Nikon sem fingir que se trata de uma Canon (até por ser desconhecedor do meio, não sabendo se a marca Canon certifica melhor qualidade).
A pele da alma parece ganhar rugas. Congeminam-se tratamentos que retardem o envelhecimento da alma. As rugas só conseguirão ser disfarçadas, na melhor das hipóteses. Não se temam as consequências do tempo – outro adágio herdado da avó. Quem quer subir ao promontório onde julga encontrar o elixir da eterna juventude só conseguirá encontrar um nevoeiro denso que nada deixa ver. É uma perda de tempo.
Poderá, a certa altura, uma demanda existencial perguntar pela verdade. Poderão estabelecer-se critérios de refinamento da verdade, deixando de parte o restolho que não contribui para a verdade. Poderão ser feitas sucessivas aproximações ao território da verdade, conduzidas por aqueles critérios. Quem assegura que a verdade é a verdade? Será a verdade assim encontrada apenas a representação da vontade que se mobiliza para encontrar a verdade? 
As baionetas assestadas ameaçam a serenidade do espírito. Podem, com toda a probabilidade, carregar as rugas da alma escondidas sob um verniz qualquer. Podem fingir um dia soalheiro quando ele está plúmbeo. Os corpos transidos exsudam-se no martírio das perguntas sucessivas que não encontram respostas. Essa talvez seja a única verdade: a ausência de verdade, ou a sua delimitação pelo império da vontade. O restante, que seja arrematado numa liquidação das sobras deixadas para trás pelas almas consequentes. Joguem-se os dados num planisfério onde as almas se acotovelam, espartilhadas pelo incómodo de serem multidão. 
Antes isso do que proceder à arrematação das próprias almas. Ninguém garante que algumas fiquem órfãs e se exponham às tribulações da arrematação. Não ficam para trás. Ficam sitiadas num estatuto diferente. Não deixam de ser almas. A estas almas não importa a tradução da verdade. 

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