19.2.20

Soberania (short stories #197)


Desert Sessions Vol. 12, “Crucifire”, in https://www.youtube.com/watch?v=7iOS1mNyvoc
          Encher a boca com soberania é como travar o vento com os dedos. Diz-se: estes são os meus limites e para lá das fronteiras que amealhei não admito a entrada de outros. Pudessem as ilusões macerar em terreno tão fértil e não haveria fome no mundo (pressupondo que era equitativa e eficaz a distribuição dos mantimentos). Somos servidos num engodo principesco: os benefícios da materialização da democracia, sob o beneplácito da tecnologia que avança mais depressa do que o tempo, oferecem possibilidades que parecem superar o infinito. Não se tem consciência das contrapartidas. Somos vulneráveis, numa assimetria que configura a nova injustiça nos meios e fins ao alcance das pessoas, uma nova ditadura que se pressente, surdamente. Um punhado de esclarecidos da tecnologia pode, se esse for o seu desejo, manter uma trela apertada sobre o nosso pescoço. E podemos nem dar conta. A não ser que o apetite da extorsão seja ativado e o perito não decaia na insónia ao exercitá-lo. As fronteiras do ser foram dissolvidas na lixívia da tecnologia que atravessa os tempos a galope desenfreado. Somos corpos expostos, vidas translúcidas ao espiolhar curioso. Somos a antítese da soberania. A palavra desmaterializou-se. É uma daquelas palavras que se tornou arcaica, passando a ininteligível quando estala na boca. Os sonhadores podem continuar a perseverar no seu graal. Convencidos da sua impecável diferença, por inigualáveis se considerarem, ignoram como são vetustos esses quadros de pensamento. Quando aterram das ilusões e intuem que a soberania se dissolveu na espuma em que medravam as quimeras, sentem a dor pungente de quem acreditava numa coisa e acordou para o seu contrário. Imputem-se os maiores culpados no processo: os educadores que insistem nos termos atávicos e instruem na matéria decadente que perdeu serventia. Reordene-se o vocabulário. Abra-se uma secção com as palavras mortas que só interessam como curiosidade arqueológica. E atire-se para lá a palavra soberania. 

Sem comentários: