21.6.24

Saco azul

Björk, “Big Time Sensuality”, in https://www.youtube.com/watch?v=-wYmq2Vz5yM

Aviso: não peçam indulgência, que a matéria emocional está a dormir. Depois acordo e percebo que não tenho paradeiro visível, sou como que matéria dissolúvel que se evaporou sob a alquimia do luar, como se me tornasse timoneiro da lua. 

Podiam arrematar das funduras da alma um módico de mudança, que me seria suplicada: pois se sobejam feridas por cicatrizar dos contínuos sobressaltos que não perdem a identidade de um só dia, devia aceitar a metamorfose para meu próprio bem. Era como se escondido estivesse um saco azul, último recurso a que deitaria mão se a contingência fosse compressora. Para saber que possibilidades me seriam habilitadas para derrotar a contingência. Talvez a bondade irrefreável estivesse entre o rol das coisas escondidas no saco azul.

Teria, então, contexto para a filantropia. Não queria reconhecimento, que a generosidade só é autêntica quando não transporta o reembolso de uma compensação. Em virtude do saco azul, os recursos não se atemorizam por não terem cais numa contabilidade qualquer. Nem tudo o que não é admitido por lei se filia na património das ilegalidades.

Ainda que houvesse hesitações: o saco azul é clandestino, deve ser tutelado pelo seu titular e por mais ninguém. Se houver um luar inaugural que trouxer legendas proféticas para a tela onde se congemina o céu, não temos de reter as palavras que se entoam com o vagar do luar. Pode ser uma distração; ou, o que será pior, de acordo com os regentes, poesia que segura o biombo da alucinação, levando-nos a estados lisérgicos que não participam na cidadania imperativa.

Não importa o que pensam os regentes. É nas manhãs lúcidas que desembaraço os lugares visitados e os que estão por visitar, as pessoas que farão rima com o futuro e as que pertencem à moldura do tempo pretérito. O saco azul esconde o segredo que pode traduzir um tempo por vir. Um investimento imaterial, polvilhando o mapa que acolhe os pés itinerantes, vadiamente rebeldes na ânsia de levantarem a mordaça que vigia o desconhecido. 

Essa é a maior esmola que podemos dar a nós próprios. O saco azul não pode ser imoderado.

20.6.24

Em matéria de harmonia e coisas análogas

The Murder Capital, “Only Good Things”, in https://www.youtube.com/watch?v=Um7cseEPzPc

Cuidadores das almas, precatem-se: há sempre um concorrente que exerce a sua aspiração a sê-lo, que a omissão de ordem profissional pôs a descoberto a desregulação da atividade. Escolhendo palavras alternativas: qualquer farsante pode ostentar a divisa de curandeiro à lapela. 

E o pior pode estar a bater às vossas caixas do correio: os cuidadores de almas emergentes podem-se socorrer de criativos mecanismos para decantar os eflúvios que sobressaltam as almas. Vocês, ultrapassados pela facúndia dos aspirantes, perdem palco. As almas que precisam de ser veladas têm muita abertura de espírito para as novas modalidades exercidas por curandeiros neófitos. Será sinal da vossa decadência, ou da entrada no portal da datação que cilindra a vossa atração no meio.

Ele há muitas almas que se deixam no limiar do descuido por culpa própria, umas vezes (o desmazelo, por exemplo), ou por um somatório de incidentes e contingências que não conseguem controlar, noutras ocasiões. E vocês, curandeiros por encartar, peritos em mezinhas acientíficas que convidam à maximização da crendice, têm pela frente um mercado apetecível. As pessoas querem ser felizes e não conseguem. Querem harmonia e só encontram hostilidade entranhada. Querem ter uma razão para poderem sorrir sem serem atraiçoadas pela maré-viva da angústia. Querem resgatar a confiança para poderem confiar sem serem vítimas da desconfiança. E querem outras doses de líricas coisas que esbarram nos artefactos contínuos da crua realidade.

Como embaixadores que prescrevem o tratamento certeiro para males que contaminam a alma compete-vos não deixar a esperança descoroçoada. É uma empreitada colossal. O risco que correm é que o mundo siga o seu caminho impiedoso, adulterando o desnaturado que depressa se converte em natural. E que um mundo órfão de esperança motive o vosso séquito a sublevar-se contra vós, participando, na denúncia, a incapacidade para remediarem os males que os afetam e ao mundo (não necessariamente por esta ordem).

Em matéria de harmonia e coisas análogas, vocês, curadores das almas, estão ao nível do princípio da inépcia geral da maioria dos regentes. Só continuam a existir enquanto houver almas que se empenham na tradução da fraqueza própria.

19.6.24

Ao destravado não interessa a cautela

Yard Act, “We Make Hits” (live at The Tonight Show Starring Jimmy Fallon), in https://www.youtube.com/watch?v=35uuxuz2F1w

Arrumado o dia, logo outro mordia as baias da contingência. Vivia no abismo do tempo, sempre a dobrar cabos que pressentiam os dias futuros, afugentando os espécimes que pudessem travar a ambição do dia. Não lhe pedissem prudência: dizia que o risco era o seu oxigénio, o acelerador do sangue que ditava as regras da existência.

Se sentia a dormência tomar conta do tempo, logo procurava arrematar desafios que reavivassem a claridade em acentuado desmaio. Não tinha medo de oferecer à lâmina imponderável o pescoço. Estava sempre pronto para navegar no poço da morte, na apetecível convulsão que desembaraça os sentidos. 

A todas as súplicas de serenidade respondia com o sinal da abjuração, como se a serenidade fosse um demónio que se preparava para colonizar a vontade. Não invocassem a cautela como modo de vida. Ir à boleia da cautela era fazer descer uma mordaça sobre a vontade como se fosse uma espada terminal. Dispensava as recomendações bem intencionadas de gente certamente bem intencionada. Tinha aversão aos que se amedrontavam com o mínimo laivo de aventura: se a infusão da existência não fosse uma aventura contínua, seria um suicídio de carácter. 

Havia certas palavras banidas do dicionário. Cautela; ponderação; equilíbrio; reflexão; amadurecimento. Só contavam as coisas espontâneas – as palavras, os gestos, as decisões. Não acreditava que o tempo fosse “bom conselheiro”. À medida que se deslaçava o tempo em que rima a ponderação de uma decisão, a autenticidade era dissolvida. As coisas que faria, se essa fosse a sua conduta, deixariam de ser a sua marca registada. Não suportava a ideia de ser refém de um fingimento. Ou de alinhar pela bússola bem pensante, a que industriava a anemia.

Chamavam-lhe destravado. Desativara os travões e percorria o tempo válido a uma velocidade alucinante. As cicatrizes eram o idioma dos contratempos inventariados. Não se importava. Nem se arrependia de todos os erros de que se esquecera com celeridade. Continuava convencido que a contagem do tempo, por que se rege a vida das pessoas, não é linear nem obedece à mesma métrica. Pelos seus cálculos a esmo, o tempo seu valia oito vezes mais do que o tempo medido pela média dos obedientemente cautelosos.

18.6.24

Frutos silvestres

Lars Bartkuhn, “Masai”, in https://www.youtube.com/watch?v=28_1sq_rKI4

Damos às bocas o sumo almiscarado, os frutos acabados de colher, um lampejo de futuro no estuário da alma. Das bocas que tutelam a fala sortílega, enquanto fugimos dos penhores alheios e prometemos o mecenato a nós mesmos. 

Os frutos maduros tingem o sangue com a doçura desembaraçada do remorso. Subimos ao miradouro e temos o mar inteiro nas mãos. E não apenas o mar visível, também o mar escondido na fronteira do horizonte. Ciciamos umas palavras forasteiras: queremos ser forasteiros a maior parte do tempo para aprendermos o que não pertence à babugem do conhecimento. Levamos a nossa melhor pele ao miradouro. E esperamos, em silêncio, que o vento estridente acalme. Esperamos que capitule ao nosso paciente charme.

Nas horas mortas, somos procuradores da vida. Como se trespassássemos os campos de frutos silvestres e deles trouxéssemos todo o mel que desfaz a indulgência da angústia. Avançamos pelas planícies contra o sol inquisidor. Antes do rio que divide as planícies, tornamo-nos curadores dos aromas dos frutos silvestres tatuados na pele. Não nos intimidámos com os espinhos dos arbustos que escondem os frutos. Sentimos a hibernação dos sentidos; os arranhões eram à prova de dor, ou eram os espinhos que traziam em si uma forma de anestesia que nos devolveu ao êxtase inaugural. 

Meses depois, parámos à beira da estrada para comprar frutos silvestres anunciados duzentos metros antes. Levámos uma amostra do aroma arrebatador e o carro dispensou aromatizadores estultos. Aquele aroma nunca mais deixou de estar embebido na ossatura do carro, na nossa própria ossatura. Tomámo-lo numa bandeira que atravessava os dias inteiros e não se escondia dos uivos noturnos dos vultos que não mostravam o rosto. Deixamos para amostra pretérita os sobressaltos que resgatavam o abismo da morada da falésia. 

Tornámo-nos triunfantes sem coroa para celebrar, carne com sede do mundo, patronos de um sangue sem fronteiras. Como se todos os idiomas navegassem no nosso sangue. Com a custódia dos frutos silvestres que estiveram vertidos no planisfério dos dias constantes. E os frutos, como corola a encimar as nossas almas audazes, como se precisássemos de ser imperadores de um couto qualquer. 

17.6.24

Descomeço

The The, “Infected”, in https://www.youtube.com/watch?v=orIy18qIaCU

Não temos nas nossas mãos as soluções para todos os problemas do mundo, mas diante de todos os problemas do mundo temos as nossas mãos

Friedrich von Schiller

No planisfério onde as lágrimas são estrofes das equações, desmatam-se as interrogações. Que não ficam órfãs. Os dedos acusam a melodia, como se, trinando no ar, desenhassem as pautas que orquestram a música. Não há planos, nem certezas, nem se encontram as pétalas que urdem a angústia. Apenas um descomeço. 

É como percorrer estradas mal pavimentadas e em cada curva astuta o anátema do passado é descerrado. Revivê-lo é tirar o punhal insidioso do bolso e trespassá-lo fundo na carne, ensanguentando a paisagem com as dores enquistadas. É o critério para resolver pendências que não souberam agradar às perguntas alinhadas. Não sabendo das horas distantes que cumpriam o desejo da estrada, apenas avançando por tentativa e erro, sem mapa por perto; até a gramática do modo e do ser se sujeitar a um recomeço.

É o descomeço que dita o compasso do tempo, por ser irresistível a pulsão que fermenta os sobressaltos interiores. Eles são ateados pelo impaciente indesejo do presente. Será preciso amontoar destroços que culpam a existencial anomia. Decidir sobre o uso dos destroços. Podem ser a argamassa de um remoçar, que se funda na destruição prévia; caso em que se confirma como pode ser regenerador o ato de destruição. Ou podem os destroços estar condenados à inutilidade, deles nada se aproveitando a não ser o embargo a que se oferece a matéria desperdiçada.

 As mãos emprestam-se à matéria insensível. Destinada está-lhes a empreitada da sua humanização. Vista de longe, da empreitada dir-se-ia ser um objeto só ao alcance dos deuses. As mãos não capitulam: sabem da contumácia dos deuses, que, não fosse a tirania das convenções e a humilde dependência das pessoas, chamar-se-iam desdeuses. As mãos deitam-se pacientemente ao labor. Saciam-se na luz clara, inaugurada pela madrugada. É lá onde encontram a gramática de que precisam.

O descomeço doi como um parto. Ainda que dure mais do que um parto, promete o degelo da hibernação a que forçados foram os que se deixaram derrotar pela letargia. O descomeço rasga as rochas xísticas que não deixavam esculpir a paisagem.

14.6.24

Ensaio sobre a originalidade da conjuntura política

Kiasmos, “Sailed”, in https://www.youtube.com/watch?v=wGhhHJs1sSk

1. A atual conjuntura política é muito interessante. É-o do ponto de vista do observador que se serve da grelha de análise da Ciência Política. Admito que não o seja para quem governa (descontado o calculismo virado para o futuro, para tirar partido – ao nível da imagem e no plano eleitoral – da confusão dos eleitores). Os cenários que se entretecem não quadram com a prática política a que estamos habituados. O que pode infundir uma sensação de desordem e de desorientação entre os eleitores, incapazes de perceber as manobras congeminadas no parlamento.

2. O palco recorrente tem sido a aprovação de medidas legislativas com o cunho da oposição. Como essa legislação não pode deixar de ser aplicada, quem a aprova assume a paternidade de uma forma original de governação: a partir da Assembleia da República, fruto da concordância entre os partidos das esquerdas e com a abstenção construtiva do partido de extrema-direita. O governo não tem encontrado condições para fazer aprovar propostas de lei que leva ao parlamento. O governo é feito a partir do parlamento e pelos partidos que não formam governo. 

3. Algumas medidas aprovadas pelos partidos da oposição partiram da iniciativa do PS. A extinção das portagens nas SCUT é o melhor exemplo; também se pode oferecer o desagravamento do IRS como exemplo. A originalidade, que pode apenas ser parcial (já vou à fundamentação), encontra-se na identificação de medidas que os dois anteriores governos do PS não colocaram no plano das hipóteses. Durante os oito anos do consulado Costa, a eliminação das portagens nas SCUT esbarrou na irredutibilidade do governo. O anterior ministro das finanças foi indiferente à devolução de parte dos ganhos fiscais de que o erário público beneficiou em virtude da espiral inflacionista. Medina quis ficar para os anais como o titular da pasta que deixou em legado o maior saldo orçamental da História da democracia. 

4. Esta é uma originalidade que pode ser parcial. Não é Costa que lidera a oposição a partir do parlamento, é Pedro Nuno Santos. A agenda política do PS pode ser diferente por o partido ter um novo líder. A alteração de prioridades políticas quando uma nova liderança assume um partido é prática corrente, aqui e em todo o lado. A questão que ficará por responder é do domínio do contrafactual: se o PS tivesse ganho as eleições de março de 2024 e tivesse formado governo assente numa maioria parlamentar, o governo teria tomado a iniciativa de abolir as portagens e de aliviar a carga do IRS? Não há resposta para esta interrogação (a menos que o(a) leitor(a) descaia para a especulação e se entretenha a adivinhar intenções, o que não é aconselhado para uma análise não contaminada pela emocionalidade exacerbada). Mas a interrogação é legítima, muito embora esteja destinada a perecer sem se encontrar com respostas.

5. Nunca, como em legislaturas anteriores, a geometria variável no parlamento foi tão acentuada. A pulverização parlamentar, com uma coligação vencedora que só conseguiria ter maioria se se unisse, ou obtivesse o voto favorável, dos outros dois partidos de direita, está na origem da geometria variável. Mas não é a única causa. O compromisso de a AD não fazer entendimentos pré e pós-eleitorais com o Chega criou o cenário propício à geometria variável. Sem o Chega, nem as direitas nem as esquerdas são maioritárias. O que fez do Chega o partido charneira. Muitas vezes através da abstenção, que tem permitido a aprovação de legislação que reúne o voto favorável dos partidos das esquerdas. 

6. Esta geometria variável é inédita e merece atenção. Podem-se antecipar várias explicações para o comportamento do Chega. O ressentimento por não ter sido incluído no arco de governação das direitas concorre como hipótese mais válida, instigando o comportamento vingativo do partido de extrema-direita: não tem aprovado as propostas de lei da coligação no governo e deixa passar muitas das propostas legislativas apresentadas pelo maior partido da oposição com o apoio dos restantes partidos das esquerdas. O Chega é o fiel da balança. No exercício deste papel, tem-se inclinado, por omissão (abstenção), para a esquerda. O que não deixa de ser contraditório com o posicionamento ideológico e, sobretudo, com a retórica radicalizada do partido. Quem tira partido deste calculismo eventualmente suicidário é, em primeira linha, o PS e, em última instância, os demais partidos à sua esquerda.

7. Há outra dimensão paradoxal da geometria variável que tem dominado a legislatura: de acordo com a peregrina teoria de Rui Tavares, as esquerdas são maioritárias no parlamento porque as direitas estabeleceram um perímetro de segurança em relação ao Chega. Tavares não contará com a falta de comparência do Chega (se assim se considerar a sua abstenção metódica) na contabilidade de votos parlamentares que caucionam a aprovação de legislação com o cunho do PS e o apoio das restantes esquerdas. Podê-lo-á não fazer para não ficar refém de um desconforto irremediável: é a falta de comparência do Chega que valida a coligação informal dos partidos das esquerdas e a governação das esquerdas a partir do parlamento.

8. Os críticos de Costa-primeiro-ministro identificam a incapacidade de reformas, o que é manifesto sobretudo no segundo governo por ter desaproveitado a maioria absoluta. O registo do novo líder do PS é diferente: voluntarista, hostiliza os adversários, parece comprometido com o “fazer” mesmo que seja mal, num registo que se assemelha à audácia de um forcado diante do touro. Governar a partir do parlamento, e do lugar da oposição, parece libertar o PS das algemas que ditaram a inércia dos governos Costa. Paradoxalmente, para o PS é mais fácil governar sendo oposição do que governo. O que só é possível pelo invulgar cenário político-partidário que caracteriza a legislatura.

13.6.24

“Vai para a tua terra”

Madness, “Madness”, in https://www.youtube.com/watch?v=yEJEO0mvxSI

Altercação à porta do hipermercado. Uma mulher ainda jovem avança resolutamente para um homem sexagenário sentado num banco e segurando um cão preto pela trela. A mulher deixa os familiares e um cão sem trela para trás e esbraceja na direção do homem, em audível vozearia, ordenando repetidas vezes: “vai para a tua terra, vai para a tua terra”. O homem não responde à injúria. Limita-se a educar a nativa, num português com sotaque talvez ucraniano ou russo, recordando que os cães devem andar na rua com trela para não atacarem pessoas e outros cães. A mulher estaciona, em pose ameaçadora, a pouco mais de um metro do homem, o dedo em riste acompanhando as únicas palavras que se soltavam iradamente da boca: “vai para a tua terra, vai para a tua terra”.

Evoca-se o racismo oculto libertado em doses não homeopáticas agora que um partido político não se envergonha de ser o procurador desse racismo. A retórica, feita de um nacionalismo ensimesmado que desconfia estruturalmente do “outro” (o migrante ou o refugiado – o estrangeiro), também se compõe de xenofobia servida em talhadas assustadoras. Em poucas semanas, esta foi a segunda vez que, a meio de uma altercação pública, ouvi um nativo a encomendar o estrangeiro para a “sua terra”. Estes mestres de indigência sentir-se-ão mais confortáveis em insultar os estrangeiros que partilham a mesma terra por terem a retaguarda protegida pelo partido de extrema-direita. Há uma certa normalização do racismo e da xenofobia, que é inversamente proporcional à qualidade do ar que partilhamos.

A desconstrução das exibições de tacanha xenofobia podia começar com uma interrogação: se os estrangeiros são encomendados para a sua terra, o que faz desta a “nossa” terra? Ter sido o terreiro do nascimento sela uma nacionalidade, mas é a caução de uma terra que seja “nossa”? Podemos dizer, com a mesma certeza que aviamos os outros para as respetivas terras, que eles estão como forasteiros porque esta é a “nossa terra”? Não podemos aceitar a ideia de propriedade exclusiva, que é, aliás, desmentida pela titularidade do Direito: a terra não é “nossa”, é de quem ostentar a certidão predial correspondente. 

A invocação de uma “terra nossa” por antinomia à “terra deles” remete para o simbólico. A terra será “nossa” porque foi o território onde nascemos e que nos enraizou numa pertença nacional. Quem continua empenhado neste sectarismo estéril ainda não percebeu que o mundo mudou e que as pessoas se deslocam de lugar em lugar, até quando as fronteiras são impedimentos. Essa pessoa ainda não percebeu que acantonar nacionalidades como se fossem capelas herméticas é uma empreitada condenada ao fracasso, se aceitarmos que a comunhão com “o outro” que é diferente de “nós” é a base para a convivência pacífica que serve de esteio a um dos bens maiores que podemos usufruir: a paz.

Oxalá alguém pudesse devolver aquela mulher exaltada à necessária serenidade, levando-a a reconhecer a desonra de atirar o imigrante para a “sua terra”. E que alguém explicasse à senhora que as pessoas que emigram não o fazem de ânimo leve: ninguém abandona a terra onde viveu para se aventurar na incógnita da emigração. Devia ser ensinado, com a paciência necessária, que refazer a vida num lugar com costumes diferentes e um idioma desconhecido é angustiante. E deviam recordar a História recente da “sua terra”, uma terra que viu partir multidões rumo à emigração quando a miséria e a guerra colonial faziam pender um punhal afiado sobre a vida dessas pessoas. É das maiores ignomínias coetâneas: a artilharia virada para os imigrantes quando fomos emigrantes num passado não tão distante como é recomendado pelo esquecimento coletivo.

Se, mesmo assim, a mulher boçal insistisse no sangue em ebulição e no ónus da estultícia, podia-se-lhe recomendar algo parecido com a ordem que ditava ao acabrunhado imigrante que a escutava já a medo: a besta que fosse devolvida ao habitat pequenino, ao seu gueto intelectual onde se sente à vontade para destilar ideias mesquinhas sobre domínios territoriais que fogem à lógica do condomínio. Mesmo que a encomenda da estultícia ao lugar de origem, numa cerca que delimita os que se tecem em esgares de indigência, seja entendida como manifestação de “fascismo social”.  

Era para a senhora perceber o que custa ser comissionada para a “terra dela”, o seu gueto mental. 

12.6.24

Da pele granítica

Scritti Politti, “The Sweetest Girl”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q7xyLXO0Utk

Não eram emoções escondidas: era a insensibilidade corrente, a partitura por que se regia por dentro da rudeza de modos, da mesma rudeza de que era feito o mundo. Um espelho da fealdade que trespassava tudo à volta. As pessoas desconfiavam. Ele também, por reciprocidade. Não pedissem cortesia se tudo o que respirava era uma boçalidade contagiante, a aspereza que se deitava nas palavras que antes fossem palavras mudas. 

Não pedissem bondade, a filantropia não quadra com os termos do mundo. Eram capazes de jurar que nunca viram uma lágrima derramada. Mesmo os que supunham as lágrimas vertidas no reduto da intimidade concebiam reservas às suas hesitações. Até na mais escura reserva de intimidade, na pura solidão onde as contas não se prestam se não à consciência, a pele granítica era a caução da insensibilidade inderrotável. Como se, extintas as lágrimas, sobrasse a crueldade da desumanização.

(Ou talvez a desumanização não fosse cruel.)

A dúvida metódica que ambientava a desconfiança não era um acaso. Era uma cadeia de ações-reações. Tinha isso a seu crédito. A fragosidade dos modos, a desconfiança entranhada, a descortesia enquistada, a repulsa pelos outros, uma certa misantropia estrutural – tudo se compunha num manual de instruções para uso próprio, um autêntico compêndio de sobrevivência. Era um código de conduta não espontâneo, a desfruição de um ecossistema hostil. A pele granítica era à prova de contratempos, temperada contra a angústia que só se caldeava com os ingénuos, o dicionário plausível contra as conspirações que espigavam por fora das proporções aceitáveis.

A pele que tinha a dureza do granito crescera com a interiorização do modo de sobrevivência. Ele aprendeu a inutilidade do remorso. Recusou as insinuações de arrependimento que pudessem soar a redenção: só há redenção se for precedida por culpa. O mundo era mau de mais para fermentadar na noção de culpa. Ao menos, ninguém imputava culpas aos outros, se ninguém era capaz de assumir a paternidade da sua própria culpa. 

Para memória dos historiadores do futuro, ficava uma impressão de desvalores. Não vingavam, assim que tomavam contacto com a pele cerdosa que ganhara a espessura do granito. Ele tornara-se à prova de outros. Todos eram à prova dos outros. Todos caminhavam para um precipício insanável. E sabiam. Acreditavam que a pele granítica era à prova de despenhamentos verticais em precipícios de que não podiam escapar. 

Faltava a prova cabal.

11.6.24

Pelo nome próprio, por favor

Groove Armada, “At the River” (live at Brixton), in https://www.youtube.com/watch?v=JdP4AfKGr-I

Somos novos e queremos ser respeitados pelos pergaminhos adultos que ainda não temos. Tememos que não nos levem a sério – ou: envelhecemos antes do tempo, despreocupados com a idade vertiginosa em que o tempo parece ser uma desmultiplicação de si próprio, ansiosos por chegar depressa de mais a uma idade que irá somar arrependimentos. 

Rogamos que nos tratem pelo nome de família, só pelo nome de família. Precisamos de ser respeitados como adultos (a destempo). A base da inexperiência tutela os juízos destemperados: como se o tratamento pelo nome de família, apenas o nome de família, fosse caução do respeito de que ainda não somos credores por défice de idade. Queremos ser torpedeados pela usura de um tempo que ainda não é nosso. Perdendo o vínculo com a meninice, quando o nome próprio era precedido de “menino”. 

Menino é ofensivo. Desqualifica-nos. Éramos atirados para um interminável poço do tempo em que o vagar impedia que pudéssemos fazer as coisas que são coutada dos adultos. A meninice é a pré-história que não traduzimos em memória(s). Quando fomos empossados adultos, continuámos iludidos pela farsa do tempo: pela farsa, de que éramos tutores, sobre a lonjura do tempo. Esse tempo era sempre zilhão. Como se arrastava, e o seu arrastamento era o estuário de adiamentos, queríamos ser uma aparência de experiência consanguínea a uma idade que não tínhamos. E rogávamos para nos tratarem, apenas, pelo nome de família. A omissão do nome próprio era a chancela da matéria adulta que demorava a ser reconhecida. 

Um salto no tempo: agora que pressentimos a escassez do tempo, procuramos fórmulas que o retardem. Convivemos mal com a extinção dos nomes próprios. Sentimos o tempo a abreviar-se, a metáfora do horizonte que desmaia na finitude destinada. Agora desejamos, como ilusão sucessiva, o contrário do que desejámos quando não tínhamos a noção da finitude destinada. Já deixamos de insistir que nos tratem pelo nome de família. Queremos que a familiaridade se filie no nome próprio, só do nome próprio. Já que não podemos resgatar o “menino” a preceder o nome próprio.

10.6.24

Suor, sem lágrimas (short stories #451)

The The, “Cognitive Dissident”, in https://www.youtube.com/watch?v=Gmwkzk2bPms

          Não tem de ser sacrifício permanente, uma costela arrancada à carne para se dar ao penhor como garantia. Não tem de ser um contínuo espinhoso, o sangue fervido na conjuntura tumultuosa. Pode haver suor mas não serem convocadas as lágrimas. A angústia não é arrematada para gáudio das almas sobressaltadas. Em dias sucessivos, a pele suada fala contra as conspirações ateadas por vultos que não cuidam da redenção. A memória é uma miragem: toma conta de um futuro tomado como passado e as estrofes desarrumadas não chegam para atraiçoar o medo rebelde. Se as lágrimas forem a concurso, não se antecipem ao seu próprio futuro. Delas é a sede de angústia que não tem sede certa. Acertam-se os fusos que rodam à volta de um circo ancestral feito de fúria e fingimento. Cada passo parece arrancado das raízes do chão. As palavras ditas são o mote para a dor. Corpos furtivos sobem à boca de cena na noite órfã e não ciciam por comiseração. É de uma luz que rompe em surdina, efémera mas dotada, o cabimento que se alista no proveito sem matéria, a carne crua à prova de cicatrizes. Sobra uma manhã deserta; sobram os dedos dormentes que aprovam o entorpecimento descuidado, imersos no suor que se antecipa às lágrimas retesadas. É nessa surdina que desfilam nomes avulsos lavados no mar que sonhou uma maré empolgante. O consentimento é uma partida sem sonho. Sentado numa sela puída, um coro de vozes desafinadas vai entoando as estrofes arrastadas de um poema sem autor. São arrancadas das bocas, as estrofes desalinhadas. Como se fosse preciso enxaguar o suor e o encargo fosse destinado a lágrimas sem paradeiro. Visíveis num pretérito habitado, mas sem resgate possível, alimentam o suor que não transige com o esquecimento das lágrimas. 

7.6.24

Segunda oportunidade

The Sisterhood, “Colours”, in https://www.youtube.com/watch?v=od4dAbaAtKE

A respiração acaba, um dia. É quando se percebe que as coisas são intemporais enquanto permanecem agarradas a um fio de vida. Ao contrário da mitologia dominante, o espírito é finito. 

As oportunidades rareiam. É o nosso entendimento frívolo, desligado da contingência das coisas, que sela os desperdícios banais que só depois cuidamos de endossar ao miradouro dos arrependimentos. Nessa altura, muitas vezes, tarde de mais. Ocasionalmente, sai a taluda da segunda oportunidade. É uma convenção: a oportunidade pode corresponder a uma terceira, quarta, quinta e assim sucessivamente oportunidade, mas enquistou-se no nome de segunda oportunidade. Quem não entender a generosidade entregue em mãos pode não se habilitar a uma segunda-segunda oportunidade. A segunda oportunidade insurge-se contra a anemia de quem não a agarra. Depois, os arrependimentos serão extemporâneos: a segunda oportunidade extinguiu-se por ser delapidada.

O direito à segunda oportunidade não é democrático. É aleatório – daí a taluda que condecora os que recebem o despacho sem aviso prévio.  Os recetadores podem seguir a segunda oportunidade. Segundo a segunda oportunidade, ensaia-se o remediar de um equivoco pretérito. É como se houvesse excecionalmente a possibilidade de desfazer uma página virada, reescrevendo-a com a tutela da retificação dos erros. A segunda oportunidade secunda uma bondade desarmante. Compõe o insólito enxaguar do tempo passado, como se as mãos fossem autorizadas a remexer nos seus escombros e, com a indulgência de quem habilitou a segunda oportunidade, trouxessem esse passado para o presente em forma de edifício candidato a um prémio de arquitetura. Ou, mais modestamente, apenas um edificado erguido dos escombros entretanto prescritos.

Segundo a segunda oportunidade, somos desculpados pelo passado tumultuoso que transbordou angústia na pele contagiada. O tempo nem sempre é agiota. Em vez da ordem cósmica que congemina a tabela de marés, às vezes antecipa-se uma interrupção para refazer a cronologia intempestiva. A segunda oportunidade é um esbanjamento se aqueles a que se destina não entenderem que é uma segunda oportunidade. Por défice de entendimento, ou por fingimento. O que é pior, no caso do fingimento.

6.6.24

Benfeitorias

Cage the Elephant, “Neon Pill”, in https://www.youtube.com/watch?v=lgxBIiG5lLI

Um dicionário nunca está desamparado. A cada segundo há quem precise de um dicionário, ou de uma gramática, para não enxovalhar o idioma. Ou para comunicar. Os mal-entendidos reportam-se à capacidade hermenêutica. É preciso decifrar metáforas, decantar ironias, aprovar as entrelinhas que se escondem no avesso das palavras. É preciso reparar o sentido desejado de um amontado de palavras que foram entretecidas para dizerem o que não era intenção dizer. 

Na escrita, é possível ir adiando a sua forma definitiva. Pode sair de supetão, um texto limpo de uma só vez. Depende da inspiração. Ou da autoindulgência, se a capacidade autocrítica for órfã. No hemisfério oposto estão os que são de si tão exigentes que procrastinam a forma final do texto, sempre aberto a uma benfeitoria aqui e outra ali, à supressão de um parágrafo, ao reordenar das palavras para que não apareçam com sentido equivoco, ao exercício radical da reescrita. 

Há os que, tempos depois, devolvem o texto à improcedência, renegando a autoria. Por mais que as tecnologias impeçam o esquecimento, o que conta é a intenção do autor. O seu nome pode continuar a oferecer-se como autor do texto impugnado pela sua vontade; se o autor quiser deixar de ser autor, nada pode exceder a sua vontade. Será um texto com autoria invertida: o autor é reconhecido no exterior de si, mas ele é o único deixou de se reconhecer como autor.

O texto falado exige outros preparos. A espontaneidade pode atraiçoar a fala, entregando ao recetor uma mensagem que não corresponde à intenção do emissor. Se não houver pedido de esclarecimento, ou se o fautor do equívoco não se retratar, o dano fica feito e abre feridas entre emissor e recetor. A comunicação sem arestas exige espíritos frontais que convoquem um esclarecimento, ou tomem a dianteira para corrigir o que foi dito, em vez de ficarem mortificados no silêncio.

As benfeitorias não são possíveis apenas para a fala que se escreve. À fala falada não pode ser cerceado o mesmo direito. Pois a deserção das benfeitorias causa entorses na comunicação e fermenta mal-entendidos muitas vezes deixados por resolver.

5.6.24

O hino atávico

Hinds ft. Beck, “Boom Boom Back”, in https://www.youtube.com/watch?v=o5I1wz1j64k

Deitemo-nos aos lugares-comuns: um hino nacional apenas é simbólico (ou é simbólico, apenas). É um ritual. Os que adotam fervor pátrio emocionam-se ao entoar as estrofes do hino. Os mais exacerbadamente nacionalistas não conseguirão reprimir uma lágrima que se desprende da intensa identidade com a pátria. Cantá-lo-ão, o hino, sem terem consciência dos versos e do que significam. Agora como na altura em que foram compostos.

Desde que Marcon se lembrou de levantar a hipótese de tropas francesas (não me recordo se estendeu a incumbência aos europeus) serem destacadas para combater os russos na Ucrânia que o serviço militar obrigatório voltou a ser assunto. Levei o assunto para uma sala de aula, numa aula sobre cidadania e direitos humanos. E os alunos, habitualmente amorfos e pouco empenhados em alimentar o debate, ocuparam uma aula inteira com a discussão sobre a hipótese do serviço militar obrigatório. Pudera: a imposição é para a geração deles. Acabou por não ser uma discussão, por falta de contraditório. A ideia que monopolizou as intervenções foi a de recusa em servir a tropa. 

Ao mesmo tempo que certas vanguardas intelectuais, peritas em profecias antes do tempo, pressentem uma crise existencial da Europa das liberdades se nada for feito para travar os russos, os que podem ser carne para canhão na linha da frente recusam a incumbência. Não é isso que está em causa quando se levanta a hipótese do serviço militar obrigatório (apesar de alguns alunos assim o terem entendido, fazendo coro com o oráculo apocalíptico dos peritos). Mas se fosse, confirmando-se a possibilidade de a extensão da invasão da Ucrânia corresponder a um ataque ao coração das liberdades e ao modo de vida a que estamos habituados, poucos se chegariam à (linha da) frente.

Não os censuro. Só os que acreditam que foram feitos para serem heróis não se importam de sacrificar a vida em nome de causas de que são embaixadores auto-constituídos. O tempo e as circunstâncias mudam. Os comportamentos também, reinventando-se na diferente densidade que se empresta à natureza humana, à convivência com os outros em obediência às exigências de gregarismo. Para ser tudo a condizer, é altura de desafiar o mero carácter simbólico do hino nacional. Para não persistir no atavismo do seu conteúdo. Pois da gesta atual, potencial fornecedora de matéria-prima para os exércitos, não se pode garantir que subscreva o apelo final:

Às armas, às armas!

Sobre a terra, sobre o mar,

 às armas, às armas!

pela Pátria lutar

contra os canhões marchar, marchar.

Primeiro, as armas que temos não provocam sequer cócegas no inimigo que for inventariado. Segundo, ao prever a hipótese de o combate ser feito no mar, não é com sucata que ameaçamos quem quer que seja – apesar de o Almirante que dirige a marinha viver numa bolha de heroísmo que apenas rima com o seu descomunal ego. Terceiro, atenta a sofisticação do armamento moderno e a sua capacidade letal, não é bom conselheiro o verso que motiva os jovens mancebos contra a marcha dos canhões.

Alguém se propõe a reinventar o hino?

(Pergunta alternativa: interessa mesmo ter um hino?)

4.6.24

Os fantasmas querem nomes? (Uma visão bondosa da União Europeia)

Pond, “Midnight Mass” and “Man It Feels Space Again” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oRlu6zl8hbw

Devia começar pelo óbvio: as opiniões são livres, uma bendição da democracia e da tolerância com os que têm um pensamento diferente; as perceções sobre entidades políticas, como a União Europeia (UE), podem divergir por partirmos de diferentes pressupostos; como corolário dos dois postulados, este texto, muito embora parta (e se distancie) de dois artigos de opinião recentes, não os quer refutar. O seu propósito é o de, modestamente, expor uma visão da UE que está nos antípodas daqueles artigos.

Os dois artigos de opinião são de Jaime Nogueira Pinto (JNP) (“O que está em jogo”, Observador, 1 de junho) e de Ricardo Pinheiro Alves (RPA) (“O federalismo é uma ameaça para a União Europeia”, Observador, 2 de junho). O federalismo como maldição da UE faz o pleno em ambos os artigos. O de RPA limita-se a mostrar a falácia do federalismo e a vaticinar que, se as elites insistirem em trazer o federalismo para dentro da UE, poderá levar ao seu desabar porque implica “uma intentona para acabar com a legitimidade democrática nacional”.

Na UE, o federalismo é o patinho feio. É frequentemente objeto de interpretações erróneas sobre o que significa. Muitas vezes, o viés dos detratores do federalismo parte de um exercício especulativo: a metamorfose da UE de acordo com um dos modelos conhecidos de federalismo. Ora, a UE é uma organização política diferente dos Estados e das típicas organizações internacionais. Sendo diferente de um Estado, e não se concebendo, com o conhecimento atual, que ambicione evoluir para os “Estados Unidos da Europa” que tanto amedrontam os opositores do federalismo, o exercício comparativo não passa de contrabando ideológico. Uma âncora imaginada para arregimentar lealdades contra a ideia de Europa.

Outra fonte da tresleitura do federalismo é partir do conceito como se fosse homogéneo. Mas não existe federalismo; há federalismos diversos, com características diferentes. Há federalismos centralizadores e federalismos que promovem a descentralização. Se os adversários do federalismo na UE insistem em esbracejar este fantasma é porque o entendem como uma ameaça existencial ao Estado-nação. JNP adverte que “(a) nação independente e soberana continua a ser a comunidade ideal para proteger direitos, liberdades e garantias, coletivos ou individuais. É importante que a União Europeia não continue a cair na tentação de querer ser mais do que uma comunidade de Nações.” Situar o problema do federalismo nestes termos ignora o federalismo descentralizado, que se inspira no princípio da subsidiariedade (a UE também se alicerça nele, convém recordar). E traz consigo uma insinuação de índole conspirativa, de base dicotómica: ou a UE recusa o federalismo, ou é a sobrevivência do Estado-nação que está em causa. 

Resgatar a História da integração europeia é um exercício pedagógico. Os pensadores na vanguarda da integração europeia podem ter preconizado soluções ambiciosas para a federalização da UE, mas a perna das decisões políticas, a que esculpiu a prática da UE, esteve sempre muitos passos atrás dessa cobiça. Os oponentes do federalismo receiam que o futuro seja madrasto para a integridade do Estado-nação. Talvez desconfiem que os futuros eurocratas, com o consentimento distraído dos políticos nacionais, sejam os fautores de uma Europa federal que enquista os poderes dos Estados na irrelevância. Não passa de um exercício especulativo, que não tem como se esconder do anátema da conspiração que é instrumental a esta posição.

O indevido entendimento do processo de integração europeia alimenta um rosário de erros. RPA alerta que os deputados eleitos para o Parlamento Europeu (PE) representam os países que os elegem e não “(...) qualquer utopia difusa chamada ‘interesse da UE’”. Admito que essa seja a sua visão pessoal que, todavia, esbarra no preceituado pelos tratados europeus. RPA esvazia a existência de “interesse europeu”, argumentando que se subsume na constelação de interesses nacionais. A ontologia da integração europeia (para além da paz, seu valor primário) funda-se na existência de problemas comuns aos Estados membros, que aceitam tratá-los em conjunto, no quadro das instituições da UE. Se não fosse hostilizar as ideias do autor, diria que esta lógica quadra com a metáfora do condomínio como fundamento de uma solução federal.

A partir do momento em que as (então) Comunidades Europeias foram criadas e dotadas de alguma autonomia, personificada num sistema institucional próprio que usufrui de autonomia em relação às autoridades nacionais, essa autonomia deve ser reconhecida à UE. Se os países cuidam dos bens públicos comuns através das instituições da UE usando recursos partilhados, como negar a existência de interesses europeus? As lições da História oferecem outro contributo inestimável: as Comunidades Europeias não nasceram à revelia dos países fundadores, nem a UE evolui em segredo, às escondidas dos Estados membros. 

JNP oferece o seu ceticismo ideológico sobre a UE. Parte da defesa dos partidos nacionalistas (é esta a sua cunhagem) para o leitor entender a posição acataléptica, ou mesmo a oposição à UE, desses partidos. Parte da sua mundivisão, influenciada pelo nativismo, para recusar o multiculturalismo e limitar a entrada de migrantes e de refugiados, pois estes comprometem “(...) a identidade a longo prazo e a segurança a curto prazo das comunidades de acolhimento (...)”. E serve-se do determinismo histórico, que a História aconselha a tratar com reserva, ao perfilhar “valores de orientação permanente (como a pátria e as pátrias, as famílias, uma ética de inspiração cristã, a liberdade)” para recusar “mais Europa” que se oponha à “Europa das nações”. 

JNP não dá conta que o derradeiro valor (que estranhamente afasta da custódia da UE) é contraditado pela formulação que o antecede. Como  advogar a liberdade partindo do pressuposto que há “valores de orientação permanente” que cerceiam a liberdade de valores alternativos?

É esta Liberdade (a maiúscula não é acidental) que habilita diferentes perceções sobre a UE. O leitor já deve ter compreendido que sou “euro-otimista”. Não diligencio a conversão dos que desconfiam da UE, pois corresponderia à violação da sua liberdade. Para defesa da minha posição concorre o pessimismo antropológico associado ao determinismo histórico do Estado-nação (esse viveiro de guerras mortíferas) e o reconhecimento de que a Europa unida, que medrou nas diversidades (o lema da UE  é “unidade na diversidade”), baniu as guerras do seu território por 79 anos (até ver). Este  é um devir comum, europeu, em antinomia com uma “Europa das nações” que é geneticamente confrontacional e propensa à beligerância.

Se o preço dos nos entendermos ao nível europeu é a paz, que esse preço seja entendido como um investimento existencial.

3.6.24

Navegar entre catástrofes

Explosions in the Sky, “All Mountains”, in https://www.youtube.com/watch?v=AASj-Wfbnxc

Podia ser poeta sem escrever poemas. 

Aquele dia era para apreciar azulejos, a traça que devolve um pulsar à cidade antiga. Antes de haver promessas de apocalipse e as pessoas terem medo de respirar, à espera de uma travessura da natureza. Há lugares que ficaram no desterro de deus, dizia do lugar ao lado, como selo da resignação que atestava uma missão avulsa. É preciso arrematar um dicionário de distrações para sermos fingidores sem fingirmos que não somos.

Pensou que devíamos reaprender o que aprendemos na escola. A escola esqueceu-se das ferramentas contra as catástrofes. A escola foi minimalista, e quem a fabricou foi tutor de um logro. Somos preparados para as catástrofes como exceções. Se forem medidas com a imprecisão do tempo, elas valem uma parte infinitésima. Não merecem o selo de contingência. Outra medida mais precisa do tempo é esquecida: as feridas abertas demoram a cicatrizar e essa cicatrização tem de ser estimada. 

No lugar do lado, contradisse: as catástrofes estão juradas para o porvir, mas ninguém sabe quando será a sua vez. Não merecemos a apoplexia contínua de quem está na véspera de um desastre. Não é desta qualidade de vida que é feita uma pertença. Devíamos aprender a viver num palco de sombras. Ter o direito a sermos apenas atores, em vez de personagens. E não sermos apedrejados pelos que se elevam a um olimpo de onde esbracejam o ensino de condutas aos outros. 

Seria como encontrar ilhas que nos permitem aportar entre catástrofes. Sabemos da sua existência. Sabemos que o futuro não se esconde delas. Não temos o dever de correr o tempo contínuo com o espectro de fantasmas a esvaziar as cores vindouras. Convocar o sobressalto perene é como hipotecar o sempre pouco tempo que temos em crédito. 

Não queremos mandantes omissos, nem mandantes que se insinuam, messiânicos, como se lhes coubesse evitar catástrofes. Não nos podem os opor aos acasos. Por mais que seja o nosso ocaso. 

Pois há poemas que se fazem sem poetas.