Hinds ft. Beck, “Boom Boom Back”, in https://www.youtube.com/watch?v=o5I1wz1j64k
Deitemo-nos aos lugares-comuns: um hino nacional apenas é simbólico (ou é simbólico, apenas). É um ritual. Os que adotam fervor pátrio emocionam-se ao entoar as estrofes do hino. Os mais exacerbadamente nacionalistas não conseguirão reprimir uma lágrima que se desprende da intensa identidade com a pátria. Cantá-lo-ão, o hino, sem terem consciência dos versos e do que significam. Agora como na altura em que foram compostos.
Desde que Marcon se lembrou de levantar a hipótese de tropas francesas (não me recordo se estendeu a incumbência aos europeus) serem destacadas para combater os russos na Ucrânia que o serviço militar obrigatório voltou a ser assunto. Levei o assunto para uma sala de aula, numa aula sobre cidadania e direitos humanos. E os alunos, habitualmente amorfos e pouco empenhados em alimentar o debate, ocuparam uma aula inteira com a discussão sobre a hipótese do serviço militar obrigatório. Pudera: a imposição é para a geração deles. Acabou por não ser uma discussão, por falta de contraditório. A ideia que monopolizou as intervenções foi a de recusa em servir a tropa.
Ao mesmo tempo que certas vanguardas intelectuais, peritas em profecias antes do tempo, pressentem uma crise existencial da Europa das liberdades se nada for feito para travar os russos, os que podem ser carne para canhão na linha da frente recusam a incumbência. Não é isso que está em causa quando se levanta a hipótese do serviço militar obrigatório (apesar de alguns alunos assim o terem entendido, fazendo coro com o oráculo apocalíptico dos peritos). Mas se fosse, confirmando-se a possibilidade de a extensão da invasão da Ucrânia corresponder a um ataque ao coração das liberdades e ao modo de vida a que estamos habituados, poucos se chegariam à (linha da) frente.
Não os censuro. Só os que acreditam que foram feitos para serem heróis não se importam de sacrificar a vida em nome de causas de que são embaixadores auto-constituídos. O tempo e as circunstâncias mudam. Os comportamentos também, reinventando-se na diferente densidade que se empresta à natureza humana, à convivência com os outros em obediência às exigências de gregarismo. Para ser tudo a condizer, é altura de desafiar o mero carácter simbólico do hino nacional. Para não persistir no atavismo do seu conteúdo. Pois da gesta atual, potencial fornecedora de matéria-prima para os exércitos, não se pode garantir que subscreva o apelo final:
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
às armas, às armas!
pela Pátria lutar
contra os canhões marchar, marchar.
Primeiro, as armas que temos não provocam sequer cócegas no inimigo que for inventariado. Segundo, ao prever a hipótese de o combate ser feito no mar, não é com sucata que ameaçamos quem quer que seja – apesar de o Almirante que dirige a marinha viver numa bolha de heroísmo que apenas rima com o seu descomunal ego. Terceiro, atenta a sofisticação do armamento moderno e a sua capacidade letal, não é bom conselheiro o verso que motiva os jovens mancebos contra a marcha dos canhões.
Alguém se propõe a reinventar o hino?
(Pergunta alternativa: interessa mesmo ter um hino?)
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