13.6.24

“Vai para a tua terra”

Madness, “Madness”, in https://www.youtube.com/watch?v=yEJEO0mvxSI

Altercação à porta do hipermercado. Uma mulher ainda jovem avança resolutamente para um homem sexagenário sentado num banco e segurando um cão preto pela trela. A mulher deixa os familiares e um cão sem trela para trás e esbraceja na direção do homem, em audível vozearia, ordenando repetidas vezes: “vai para a tua terra, vai para a tua terra”. O homem não responde à injúria. Limita-se a educar a nativa, num português com sotaque talvez ucraniano ou russo, recordando que os cães devem andar na rua com trela para não atacarem pessoas e outros cães. A mulher estaciona, em pose ameaçadora, a pouco mais de um metro do homem, o dedo em riste acompanhando as únicas palavras que se soltavam iradamente da boca: “vai para a tua terra, vai para a tua terra”.

Evoca-se o racismo oculto libertado em doses não homeopáticas agora que um partido político não se envergonha de ser o procurador desse racismo. A retórica, feita de um nacionalismo ensimesmado que desconfia estruturalmente do “outro” (o migrante ou o refugiado – o estrangeiro), também se compõe de xenofobia servida em talhadas assustadoras. Em poucas semanas, esta foi a segunda vez que, a meio de uma altercação pública, ouvi um nativo a encomendar o estrangeiro para a “sua terra”. Estes mestres de indigência sentir-se-ão mais confortáveis em insultar os estrangeiros que partilham a mesma terra por terem a retaguarda protegida pelo partido de extrema-direita. Há uma certa normalização do racismo e da xenofobia, que é inversamente proporcional à qualidade do ar que partilhamos.

A desconstrução das exibições de tacanha xenofobia podia começar com uma interrogação: se os estrangeiros são encomendados para a sua terra, o que faz desta a “nossa” terra? Ter sido o terreiro do nascimento sela uma nacionalidade, mas é a caução de uma terra que seja “nossa”? Podemos dizer, com a mesma certeza que aviamos os outros para as respetivas terras, que eles estão como forasteiros porque esta é a “nossa terra”? Não podemos aceitar a ideia de propriedade exclusiva, que é, aliás, desmentida pela titularidade do Direito: a terra não é “nossa”, é de quem ostentar a certidão predial correspondente. 

A invocação de uma “terra nossa” por antinomia à “terra deles” remete para o simbólico. A terra será “nossa” porque foi o território onde nascemos e que nos enraizou numa pertença nacional. Quem continua empenhado neste sectarismo estéril ainda não percebeu que o mundo mudou e que as pessoas se deslocam de lugar em lugar, até quando as fronteiras são impedimentos. Essa pessoa ainda não percebeu que acantonar nacionalidades como se fossem capelas herméticas é uma empreitada condenada ao fracasso, se aceitarmos que a comunhão com “o outro” que é diferente de “nós” é a base para a convivência pacífica que serve de esteio a um dos bens maiores que podemos usufruir: a paz.

Oxalá alguém pudesse devolver aquela mulher exaltada à necessária serenidade, levando-a a reconhecer a desonra de atirar o imigrante para a “sua terra”. E que alguém explicasse à senhora que as pessoas que emigram não o fazem de ânimo leve: ninguém abandona a terra onde viveu para se aventurar na incógnita da emigração. Devia ser ensinado, com a paciência necessária, que refazer a vida num lugar com costumes diferentes e um idioma desconhecido é angustiante. E deviam recordar a História recente da “sua terra”, uma terra que viu partir multidões rumo à emigração quando a miséria e a guerra colonial faziam pender um punhal afiado sobre a vida dessas pessoas. É das maiores ignomínias coetâneas: a artilharia virada para os imigrantes quando fomos emigrantes num passado não tão distante como é recomendado pelo esquecimento coletivo.

Se, mesmo assim, a mulher boçal insistisse no sangue em ebulição e no ónus da estultícia, podia-se-lhe recomendar algo parecido com a ordem que ditava ao acabrunhado imigrante que a escutava já a medo: a besta que fosse devolvida ao habitat pequenino, ao seu gueto intelectual onde se sente à vontade para destilar ideias mesquinhas sobre domínios territoriais que fogem à lógica do condomínio. Mesmo que a encomenda da estultícia ao lugar de origem, numa cerca que delimita os que se tecem em esgares de indigência, seja entendida como manifestação de “fascismo social”.  

Era para a senhora perceber o que custa ser comissionada para a “terra dela”, o seu gueto mental. 

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