6.6.24

Benfeitorias

Cage the Elephant, “Neon Pill”, in https://www.youtube.com/watch?v=lgxBIiG5lLI

Um dicionário nunca está desamparado. A cada segundo há quem precise de um dicionário, ou de uma gramática, para não enxovalhar o idioma. Ou para comunicar. Os mal-entendidos reportam-se à capacidade hermenêutica. É preciso decifrar metáforas, decantar ironias, aprovar as entrelinhas que se escondem no avesso das palavras. É preciso reparar o sentido desejado de um amontado de palavras que foram entretecidas para dizerem o que não era intenção dizer. 

Na escrita, é possível ir adiando a sua forma definitiva. Pode sair de supetão, um texto limpo de uma só vez. Depende da inspiração. Ou da autoindulgência, se a capacidade autocrítica for órfã. No hemisfério oposto estão os que são de si tão exigentes que procrastinam a forma final do texto, sempre aberto a uma benfeitoria aqui e outra ali, à supressão de um parágrafo, ao reordenar das palavras para que não apareçam com sentido equivoco, ao exercício radical da reescrita. 

Há os que, tempos depois, devolvem o texto à improcedência, renegando a autoria. Por mais que as tecnologias impeçam o esquecimento, o que conta é a intenção do autor. O seu nome pode continuar a oferecer-se como autor do texto impugnado pela sua vontade; se o autor quiser deixar de ser autor, nada pode exceder a sua vontade. Será um texto com autoria invertida: o autor é reconhecido no exterior de si, mas ele é o único deixou de se reconhecer como autor.

O texto falado exige outros preparos. A espontaneidade pode atraiçoar a fala, entregando ao recetor uma mensagem que não corresponde à intenção do emissor. Se não houver pedido de esclarecimento, ou se o fautor do equívoco não se retratar, o dano fica feito e abre feridas entre emissor e recetor. A comunicação sem arestas exige espíritos frontais que convoquem um esclarecimento, ou tomem a dianteira para corrigir o que foi dito, em vez de ficarem mortificados no silêncio.

As benfeitorias não são possíveis apenas para a fala que se escreve. À fala falada não pode ser cerceado o mesmo direito. Pois a deserção das benfeitorias causa entorses na comunicação e fermenta mal-entendidos muitas vezes deixados por resolver.

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