12.6.24

Da pele granítica

Scritti Politti, “The Sweetest Girl”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q7xyLXO0Utk

Não eram emoções escondidas: era a insensibilidade corrente, a partitura por que se regia por dentro da rudeza de modos, da mesma rudeza de que era feito o mundo. Um espelho da fealdade que trespassava tudo à volta. As pessoas desconfiavam. Ele também, por reciprocidade. Não pedissem cortesia se tudo o que respirava era uma boçalidade contagiante, a aspereza que se deitava nas palavras que antes fossem palavras mudas. 

Não pedissem bondade, a filantropia não quadra com os termos do mundo. Eram capazes de jurar que nunca viram uma lágrima derramada. Mesmo os que supunham as lágrimas vertidas no reduto da intimidade concebiam reservas às suas hesitações. Até na mais escura reserva de intimidade, na pura solidão onde as contas não se prestam se não à consciência, a pele granítica era a caução da insensibilidade inderrotável. Como se, extintas as lágrimas, sobrasse a crueldade da desumanização.

(Ou talvez a desumanização não fosse cruel.)

A dúvida metódica que ambientava a desconfiança não era um acaso. Era uma cadeia de ações-reações. Tinha isso a seu crédito. A fragosidade dos modos, a desconfiança entranhada, a descortesia enquistada, a repulsa pelos outros, uma certa misantropia estrutural – tudo se compunha num manual de instruções para uso próprio, um autêntico compêndio de sobrevivência. Era um código de conduta não espontâneo, a desfruição de um ecossistema hostil. A pele granítica era à prova de contratempos, temperada contra a angústia que só se caldeava com os ingénuos, o dicionário plausível contra as conspirações que espigavam por fora das proporções aceitáveis.

A pele que tinha a dureza do granito crescera com a interiorização do modo de sobrevivência. Ele aprendeu a inutilidade do remorso. Recusou as insinuações de arrependimento que pudessem soar a redenção: só há redenção se for precedida por culpa. O mundo era mau de mais para fermentadar na noção de culpa. Ao menos, ninguém imputava culpas aos outros, se ninguém era capaz de assumir a paternidade da sua própria culpa. 

Para memória dos historiadores do futuro, ficava uma impressão de desvalores. Não vingavam, assim que tomavam contacto com a pele cerdosa que ganhara a espessura do granito. Ele tornara-se à prova de outros. Todos eram à prova dos outros. Todos caminhavam para um precipício insanável. E sabiam. Acreditavam que a pele granítica era à prova de despenhamentos verticais em precipícios de que não podiam escapar. 

Faltava a prova cabal.

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