Trentemøller, “Dreamweavers”, in https://www.youtube.com/watch?v=Mu5whUqFGvM
Ato n.º 5
[À mesa do café, com a manhã a fundir-se nas árvores ainda estremunhadas. As pessoas apressadamente entrecruzadas como se fizessem parte umas das outras, sem saberem. O empregado do café exsuda boa disposição, fingindo a boa disposição. Um homem andrajoso mendiga esmola para tomar o pequeno-almoço, perante a indiferença dos clientes da esplanada.
A manhã pode ser cruel. Tudo pode ser cruel.]
A esquerda é só um lado. Esquerda e direita – sem conotações como as que enxameiam os jornais e as televisões. “Guerras de alecrim e manjerona”, já alguém pressentira, e acertadamente o fez, numa página anterior do tempo. Esquerda e direita: ou: com que mão escreve a maioria? O pior é quando os espelhos se abatem sobre nós com o fragor de uma onda que, furiosa, alardeia a maré-viva. E esses espelhos se requebram, uma e outra vez, jurando um futuro embaciado. Nós, despedaçados, ciciamos uma dor que não tem cadastro. Uma dor que não se importa com as trincheiras que se opõem.
Tinha um amigo que chamava a estes espelhos os espelhos mascavados. Dizia-o como se o mascavado corporizasse um amargor que tomava conta do sangue, deixando-o inerte, o resto do corpo sitiado pela letargia. Aquela letargia que nos condena a uma hibernação involuntária, o sintoma identificado por perspicazes engenheiros da alma coletiva (como se ela existisse) como uma descidadania.
Os espelhos mascavados roubam uma fatia de leão ao futuro. Nós, sob o efeito da coletiva anestesia, atirados para o enamoramento do fátuo consumismo e para a lateralidade das coisas frívolas, convencidos pelos efeitos espetaculares que distraem dos assuntos essenciais, não sabíamos de logros ou de mentiras. Quando acordávamos do futuro, num pedestal abaixo do nível do mar, ficávamos atónitos: “como foi possível?”, perguntávamos insistentemente, usando a fórmula para ajuizar a surpresa com um certo estatuto extraído ao espelho mascavado e agora revelado sob a forma de espelho refinado.
A maioria celebrava, então, a reposição da alvura que desembaciava os espelhos profetas. Queriam penhorar o futuro, como se pudessem nadar por dentro dele, adivinhando a sua silhueta. Não davam conta que, ao assim procederem, estavam a iterar o passado. Deixava de haver uma fronteira entre o passado e o futuro, os dois confundidos num tempo só. Era o pior logro em que podíamos cair.
Entre duas possibilidades meãs, preferia a originalidade do espelho mascavado. A penumbra ofuscava as mãos. Não tinha importância: as mãos não têm de tutelar tudo o que as sonda. O mascavado contém o estatuto original, a sua forma ainda bruta que nos deixa à prova das contrariedades indissolúveis que o imperativo gregário atesta.
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