17.6.24

Descomeço

The The, “Infected”, in https://www.youtube.com/watch?v=orIy18qIaCU

Não temos nas nossas mãos as soluções para todos os problemas do mundo, mas diante de todos os problemas do mundo temos as nossas mãos

Friedrich von Schiller

No planisfério onde as lágrimas são estrofes das equações, desmatam-se as interrogações. Que não ficam órfãs. Os dedos acusam a melodia, como se, trinando no ar, desenhassem as pautas que orquestram a música. Não há planos, nem certezas, nem se encontram as pétalas que urdem a angústia. Apenas um descomeço. 

É como percorrer estradas mal pavimentadas e em cada curva astuta o anátema do passado é descerrado. Revivê-lo é tirar o punhal insidioso do bolso e trespassá-lo fundo na carne, ensanguentando a paisagem com as dores enquistadas. É o critério para resolver pendências que não souberam agradar às perguntas alinhadas. Não sabendo das horas distantes que cumpriam o desejo da estrada, apenas avançando por tentativa e erro, sem mapa por perto; até a gramática do modo e do ser se sujeitar a um recomeço.

É o descomeço que dita o compasso do tempo, por ser irresistível a pulsão que fermenta os sobressaltos interiores. Eles são ateados pelo impaciente indesejo do presente. Será preciso amontoar destroços que culpam a existencial anomia. Decidir sobre o uso dos destroços. Podem ser a argamassa de um remoçar, que se funda na destruição prévia; caso em que se confirma como pode ser regenerador o ato de destruição. Ou podem os destroços estar condenados à inutilidade, deles nada se aproveitando a não ser o embargo a que se oferece a matéria desperdiçada.

 As mãos emprestam-se à matéria insensível. Destinada está-lhes a empreitada da sua humanização. Vista de longe, da empreitada dir-se-ia ser um objeto só ao alcance dos deuses. As mãos não capitulam: sabem da contumácia dos deuses, que, não fosse a tirania das convenções e a humilde dependência das pessoas, chamar-se-iam desdeuses. As mãos deitam-se pacientemente ao labor. Saciam-se na luz clara, inaugurada pela madrugada. É lá onde encontram a gramática de que precisam.

O descomeço doi como um parto. Ainda que dure mais do que um parto, promete o degelo da hibernação a que forçados foram os que se deixaram derrotar pela letargia. O descomeço rasga as rochas xísticas que não deixavam esculpir a paisagem.

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