21.10.24

A caligrafia dantes

The Limiñanas, “Au début c’était le début” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OoIM7EC_mXM&list=RDOoIM7EC_mXM&start_radio=1

Lembrar-se-ão – e não precisam de ser veteranos – as vezes que velhos do Restelo, nostálgicos de apurada cepa e outra gente viciada no passado começavam frases extasiados com os benfeitorias do passado: “dantes é que...” 

Açambarcados pelo medo do presente e pelo pânico do futuro, estruturalmente conservadores (porque pressentem que a mudança é a rima consequente do futuro), sobressaltam-se quando intuem que o dia consecutivo vai abolir alguns verbetes que compõem o situacionismo em vigor. Eles, que até preferiam o situacionismo de antanho, e quanto mais de antanho melhor soa, querem limitar os danos da incerteza. Se pudessem, adiavam o dia consecutivo; os mais ousadamente passadistas fariam, se também pudessem, um golpe de Estado. Só para extinguir o futuro, ou remodelar o tempo para que ele passasse a ser a preceito das suas preferências. Sem contemplarem as consequências, como impõem os cânones: se o futuro deixasse de existir, o amanhã teria prescrito antes do tempo, uma injustiça atroz por não se conceder uma oportunidade ao dia consecutivo. 

Os saudosistas já morreram e ainda não deram conta.

Ou então, são apenas velhos que convivem mal com a senescência. Amargos por dentro, fustigam as novidades em que estão constantemente a tropeçar. São coisas novas a mais. Como não fazem esforço para inventariar as mudanças, resistem. Ficam agarrados às saias puídas do passado, ao bolor inconsequente que a nostalgia concretiza. Escrevem todo o seu protesto com uma caneta Bic. Tem de ser Bic. A manuscrita é um dever irrecusável para não serem acusados de transigir com os sacerdotes da modernidade a quem acusam de se cansarem depressa com o tempo que têm entre mãos.

A caligrafia, impecavelmente estética, sem gatafunhos nem emendas, protesta contra a voracidade do tempo. Estão convencidos que o tempo anda mais depressa do que no tempo em que o tempo obedecia às convenções. Querem convencer o bom povo que é vítima de uma conspiração. Ou talvez não: o seu pessimismo antropológico certifica a necessidade de fazer o tempo correr depressa. As vidas deixam de ser torturas que se alongam num tempo que parecia não ter fim, mas afinal voa a uma velocidade supersónica. 

Os mecenas da nostalgia têm de rever a caligrafia. 

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