Beastie Boys, “Make Some Noise”, in https://www.youtube.com/watch?v=WdgLMslbDuY
Uma estrela da extrema-esquerda espanhola, Iñigo Errejón, caiu em desgraça por acusações de assédio sexual e maus-tratos a mais de uma dúzia de mulheres. Ao ler os relatos das vítimas, o quadro é assustador: é um psicopata que joga psicologicamente com as mulheres e que abusa do poder porque se comporta como se fosse deus. Confrontado com a controvérsia, no momento de se demitir atirou as culpas para o neoliberalismo.
Isto não soa a novo. Um sociólogo coimbrão, com um numeroso séquito espalhado todo o mundo, atrapalhado com os casos de assédio sexual e de extrativismo que despontaram pela voz de investigadoras que foram suas orientandas, invocou a vetusta idade como circunstância desculpabilizante, atirando a responsabilidade para um marialvismo enraizado que é geracional. No caso de Boaventura, como no caso de Errejón, a culpa tenderia a morrer solteira.
Ou talvez não: no caso do Prof. Boaventura, a culpa está na indeclinável propensão para o aproveitamento sexual das mulheres, contrariando uma temática que foi extensivamente teorizada pelo sociólogo coimbrão: a denúncia do patriarcado nas relações sociais. O assédio seria algo de inato aos homens da sua geração, que não o seriam a sério se conseguissem resistir aos apelos carnais na presença de mulheres sensuais. O problema dos deslizes do Prof. Boaventura é ter nascido quando nasceu e de não conseguir domar a mãozinha marota e o falo irrequieto.
No caso de Errejón, a culpa não morre solteira porque decidiu torcer a realidade com a proficiência de um mitómano compulsivo, vindo a público culpar o neoliberalismo pelo seu comportamento hediondo com as mulheres. Errejón tem algumas gerações de desvantagem em relação ao Prof. Boaventura (metade da idade), o que o inibe de recorrer ao mesmo pretexto do teorizador da epistemologia do sul. Ocorreu-lhe o óbvio, atirando-se ao neoliberalismo. Talvez por ter passado toda a sua carreira política (que, espera-se, tenha terminado) a combater o neoliberalismo.
O que incomoda nestes dois exemplos é a fuga em frente e a demissão das responsabilidades próprias. Se acreditarmos na lengalenga de ambos, teremos de aceitar, com a condescendência que se impõe para salvar uma figura pré-deificada, que o Prof. Boaventura estava contaminado com o vírus demoníaco do marialvismo e que, por mais que se tenha esforçado, não conseguiu combatê-lo. Daí à mãozinha marota na perninha da investigadora júnior e ao pénis inquisitivo, foi um passo. Sem culpa a imputar ao Prof. Boaventura, que tanto se autoflagelava por ter nascido na geração errada. E teremos de acreditar que Errejón seduzia e depois maltratava as mulheres porque estava possuído pelo gene do neoliberalismo, o que deve ser medonho para quem tanto combateu o neoliberalismo. Ou então, o Prof. Boaventura é um lídimo expoente do patriarcado e Errejón um neoliberal da pior cepa. Assim caem as máscaras que escondem fingimentos.
No fundo, Boaventura & Errejón são duas pobres almas atormentadas que não conseguem controlar os instintos primários e cedem ao ambiente, socialmente construído, em que são meros peões e não atores que o influenciam. E todas as mulheres que caíram nas armadilhas dos dois abusadores deviam continuar caladas e perpetuar as delícias de Boaventura & Errejón – em nome das lutas que não se podem questionar. O contexto, há que não esquecer, explica tudo. Até reconhecermos a privação de livre arbítrio a que somos conduzidos pela retórica malsinada de ambos.
Já se sabia que o neoliberalismo tem as costas largas. Mas não tanto.
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