18.10.24

O mal de ser metódico

The Comet Is Coming, “Technicolour” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=uax7xVm_hko

Um metódico gaba-se de ser metódico. Não consegue organizar-se sem ser organizado. Congemina critérios, estabelece regras, formula calendários e respeita datas. Detesta estar em atraso. É tomado pela apoplexia quando pressente que pode chegar com atraso. 

No meio de tantos processos e critérios e calendários e mnemónicas diversas, o metódico torna-se refém do método exacerbado. Refém de si mesmo, incapaz de se libertar da contingência do processo que armou para não ficar perdido a meio de um ermo onde se acentuasse a desorientação. Fica em pânico só de pensar na hipótese da desorientação. 

Sopesa as contrariedades de ser metódico com a ausência de método. Levou a vida inteira convencido que ter um método é uma boia de salvação para o caos intrínseco do mundo exterior. Não saberia ser cultor do caos – e avalia, sem conhecimento de causa, o que é medrar no caos se não fosse um dedicado cultor do método que inventou para si. Corrige o murmúrio interior: o que seria medrar no caos, pois não pode haver conhecimento de causa do que não se conhece. 

Para esvaziar o auto de si mesmo, ensaia um exercício contrafactual (ser honesto, a começar consigo mesmo, é uma exigência do método autoproposto). Uma parte de si que costuma andar escondida, à revelia – uma espécie de personalidade rebelde, que conseguiu calar durante quase todo o tempo – lança uma interrogação: estás a tentar convencer-te do que tens sem teres meios para julgar o seu oposto? Não é honesto. Com uma agravante: estás a negar o método extremado de que és cultor. 

Depois de reagir espontaneamente à interrogação (que pergunta provocatória; ah! este demónio interior, que não consigo erradicar…), afugentou o medo como inerte do desconhecimento. Admitiu: se nunca experimentou o caos, como pode manter que não sabe ser senão metódico?

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