Tv on the Radio, “Happy Idiot” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=pObFyqXj2II
“O melhor que disseram de mim foi quando estiveram calados.”
Herberto Helder
É preciso a morte para deixarmos de ser bestas e passarmos a bestiais. Incomoda-me esta hipocrisia dos vivos. Só elogiam os mortos quando eles já não estão em carne viva para ouvirem os elogios. Os peritos em carpir lágrimas a destempo cumprem a pior homenagem do morto. Lembrar uma vida inteira, ou fragmentos dessa vida, apenas quando ela deixou de existir, é atropelar o conceito de vida, uma ofensa à sua dignidade.
Podiam inventar uma derivação do testamento vital para que os interessados pudessem ditar a sua vontade no momento das exéquias. Para que pudesse ser imposto o silêncio quando a vontade do então falecido fosse passada à prática, proibindo quaisquer palavras elogiosas que alguém quisesse proferir na ocasião. Pegando nas palavras de Herberto Helder como mote, ficaria lavrado no testamento vital: “já que em vida não me elogiaram, estejam calados, agora que morri.” E todos estariam calados, que a última vontade do defunto é para cumprir.
Talvez se caminhasse para a destituição da hipocrisia que é a desonra que se comete sobre a pessoa cuja vida se extinguiu. Em vez de palavras condoídas e trespassadas pela emoção, proclamações poéticas que mais parecem um exercício de autocomiseração, ou de auto-glorificação dos dotes do vate de pé de urna, em vez de sentidos elogios que traduzem o defunto como modelo de virtudes, o silêncio. Apenas o silêncio. O silêncio como manifestação do respeito que o defunto merece. Em vez das palavras gongóricas de peritos em perorar em funerais que tantas vezes correm o risco de serem inverdadeiras, ou de fazerem um último retrato que se desvia de quem o falecido foi, apenas o silêncio. Pois é de silêncio que se compõe o respeito pela memória de quem recebe a derradeira homenagem.
Às vezes, diz-se que as palavras são um logro, que contêm em si a negação do que proclamam. Por melhores que sejam as intenções, um elogio fúnebre acaba por ser exagerado, descontextualizado, imerecido. Não é a morte que justifica que os mortos sejam exaustivamente elogiados só porque acabaram de morrer. Sem que os elogiadores percebam, é um ultraje à vida do defunto e às vidas de todos os que escutam o elogio fúnebre. É um ultraje à própria vida.
Quando as palavras podem ser um logro, que arremeta o silêncio austero. O recolhimento do momento exige o silêncio, não as palavras desmedidas que povoam os elogios que o elogiado já não consegue ouvir.
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