Explosions in the Sky, “Peace or Quiet”, in https://www.youtube.com/watch?v=YhspFqdTU64
Benditas, as caricaturas. Ajudam a desalfandegar as angústias colhidas à custa da fealdade que o espelho insiste em devolver e o próprio em aceitar a devolução. A autoestima lida mal com a feiura autorretratada. Se ao menos houvesse a hipótese de o espelho pecar por excesso e os detalhes devolvidos fossem uma representação exagerada, talvez estivesse uns degraus abaixo na escala da feiura. E assim resolvia uma dúzia de pendências que cavavam o fosso onde gravitava a angústia.
Ao passar na rua pedonal, reparou num desenhador que tomava a seu cargo as caricaturas que fossem encomendadas pelos transeuntes. Atrás do cavalete onde desenhava as feições desproporcionadas de uma menina turista, desfilavam alguns exemplos do portfolio do artista. Personalidades, logo, gente conhecida do público, sob o traço extravagante do caricaturista. Eram todos muito mais feios do que em carne viva, ou pelo menos nos ecrãs da televisão.
(Não vale a pena comentar os retratos de políticos-candidatos em campanha eleitoral. Abusam do recurso aos efeitos mágicos de programas informáticos que retocam a imagem e tiram, de uma assentada, uma década ou mais, e uma quinzena de quilos, aos candidatos assim fingidos. Ou não são imediatamente reconhecidos quando fazem as vezes de transeuntes, ou têm de ouvir o desastrado comentário de um anónimo qualquer, surpreendido pelo desfasamento: “parece mais velho do que nos cartazes, o senhor candidato”.)
Candidatou-se ao banco onde os retratados posam diante do artista. Teve de esperar que terminasse a caricatura da menina turista. Depois foi a sua vez. Nunca pensou que podia ser modelo. Mesmo que não estivesse arregimentado como modelo profissional, estava no lugar do modelo para ter em mãos uma caricatura sua. Modelo! – as voltas que a vida dá, não deixou de refletir em silêncio, enquanto esboçava um sorriso sardónico que devolvia a todos os que no passado escarneceram da sua fealdade.
Meia-hora depois teve autorização para se levantar do banco e espreitar a caricatura. O artista, que aprendeu umas lições de marketing e as aplica na arte de mercar a sua arte, fez como os cabeleireiros quando terminam o corte de cabelo: perguntou se estava contente com a caricatura, ou se queria mudar algum detalhe de que não gostava. Olhou com vagar para a caricatura e não demorou a reconhecer-se no desenho. Como acontece com as caricaturas, havia traços do rosto que estavam exagerados. Uma caricatura é isso, exacerba os traços faciais dos caricaturados, ou não é caricatura.
Por ele, a caricatura estava perfeita. Podia emoldurá-la no lugar do espelho habitual. Aquele fora uma dia muito proveitoso: de acordo com a caricatura, podia ser mais feio.
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