The Limiñanas ft. Bobby Gillespie, “Prisoner of Beauty”, in https://www.youtube.com/watch?v=LjGvdFggjhw
Não descia o olhar sobre as cortinas fendidas do nevoeiro que dominava a manhã. Ao ciciar um idioma ao acaso vestiu o papel de forasteiro. Repetia o exercício com frequência: gostava de ser forasteiro na sua cidade. Tinha provas: em zonas de movimentação turística, passeava com o vagar de um forasteiro, o olhar fingidamente alçado para cima, a cabeça movimentando-se ora para um lado, ora para o outro, e os empregados de mesa que acenavam instrutivamente as ementas dos restaurantes para cativarem clientela dirigiam-se em inglês à sua passagem.
Esse prazer não era uma declinação do fingimento. E ainda que fosse, esse é o estado natural das pessoas durante grande parte do tempo. As reservas em admitir o fingimento vinham de dentro, como se fosse uma cal estrutural a instruir deveres morais a que só ele podia responder. Não tinha projeção exterior. Quanto ao demais, não devia ser muito diferente das outras pessoas: a descorrespondência entre princípios e prática ficava reservada aos domínios da consciência, vedados à sindicância exterior. Não chegava para compor uma angústia.
Postas de parte estas considerações, filiava o fazer de conta de forasteiro na falta de identificação com a cidade que veio a crescer com a idade. Era importunado pelos diagnósticos inapeláveis dos meirinhos que atestavam que a cidade era a melhor-disto-e-daquilo-e-do-mundo-inteiro. Deixara de ter paciência para provincianismos e para a falta de mundo adjacente. (Esses meirinhos que tivessem um cheiro de mundo para serem os primeiros a desmentir os seus provincianos diagnósticos.)
Não era tanto pelo divórcio de identidade com a cidade – em abono do rigor, com as pessoas que habitam a cidade e que dela fazem o que é, que a cidade, sem as pessoas que a habitam, não tem culpa de ser quem é. O fingimento da forasteira condição era um prazer interior, talvez inexplicável. Era uma sede de ser constantemente nómada sem sair de casa. Como se andasse atrás de mundo sem ter de emalar os pertences. E pela gratificação de passar por forasteiro na sua própria cidade. Uma vez apanhou um táxi. Sem ser ele a começar a conversa, o taxista falou sempre em inglês.
Não precisava de outro atestado que confirmasse que era um peixe fora da água na sua cidade.
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