16.10.24

Vintena

The Sundays, “Wild Horses”, in https://www.youtube.com/watch?v=x7GE90n6XX8

Se andasse com o relógio vinte anos para trás, gostava que visses como eras quando respiraste pela primeira vez. Um corpo amarrotado, avermelhado, trazendo os restos da placenta como se fosse uma comenda, um choro convulsivo como maravilhosa prova de vida, o cabelo escuro e pegajoso contrariando a calvície sempre prematura dos recém-nascidos, o espernear consanguíneo de quem prova o ambiente sem as muralhas a que estava habituada. 

Quando enfim soubeste que viver fora do útero não era o caos que pressentiste nos minutos inaugurais, devias ver a imagem que resplandecia na serenidade no teu primeiro sono. Demorei a contemplar a paz que personificavas. Fiquei não-sei-bem-quantos-minutos a decifrar os leves esgares a que te conduzia o sono inaugural – já então tinhas sonhos e ainda não sabias nada dos feitiços que os sonhos fabricam em forma de poesia. Apertaste a mão contra o dedo que atirei na tua direção e um estremecimento percorreu o meu corpo. Dizem os entendidos que é o amor filial, a celebração das almas gémeas que se juntam na comunhão entre pai e filha. Foi logo nesse primeiro dia que começámos a falar, apesar do teu silêncio apenas entrecortado pelo choro faminto. 

Se, com a ajuda da alquimia, fizesse recuar os ponteiros do relógio numa frenética viagem pela vintena de anos que cumpres hoje, era capaz de atear com o lampejo de uma luz avivada todos os momentos inaugurais que da tua vida fui testemunha. Para os veres como peças de um puzzle que apenas dispõe fragmentos dos sete mil trezentos e quatro dias que são a moldura onde cabes. 

Mas isso era se fôssemos reféns da nostalgia. Se não houvesse vida por celebrar, agora e depois, e não pudéssemos dizer que continuamos a ser cúmplices, como bebemos este amor singular que não se esconde das palavras e dos gestos. Uma vintena de anos é apenas um par de páginas viradas, à espera de muitas outras e ainda mais repletas do muito que queiras teu. 

Em mim, encontras o que precisares que eu seja. Farol, ou porta; verbo, ou silêncio; céu onde se escondem segredos, ou mar onde mergulhas as mãos; rosto-espelho, ou miradouro por onde espreitas o futuro; cais descoberto no deserto, ou parede para enxugar lágrimas; livro como peito aberto, ou o mundo inteiro pelo passo da minha mão. 

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