4.10.24

Roda-viva

Einstürzende Neubauten, “Ist Ist” (live Tvornica Kultur), in https://www.youtube.com/watch?v=Di0h52gBYHc

Um concerto armado sem pressa, as luzes coalhavam o suor que ia assentando nos corpos. A sala estava cheia e abafada. À medida que entrava gente tornava-se ainda mais quente. De repente, apenas a escuridão. Uma música a romper a escuridão, hipnótica, introdutória. A audiência fala este código de conduta: os músicos estavam quase a entrar em palco. 

A música não era de modo a pensar-se numa entrada triunfal dos músicos. Não era o seu perfil. O carisma pode ser passageiro da discrição. Os segundos arrastavam-se, a escuridão continuava a rimar com a música hipnótica, mas dos músicos não havia pressentimento. A agitação anterior foi temperada e o gelo começou a abater sobre a sala. Vinha a calhar, que o suor prematuro já tinha assentado nos corpos.  Prematuro, o suor: ainda estava por vir a adrenalina do concerto, os corpos desamordaçados para o frenesim da sua movimentação, como se fossem ateados pela música que subia a palco.

Os músicos entram em palco. Com vagar. A idade deixa marcas do passado e os corpos ficam cansados, gastos, com a desambição do tempo. Os músicos acenam discretamente para o público enquanto vão caminhando para as suas posições. A escuridão foi substituída por uma luz timorata, dando lugar a uma penumbra metodicamente instalada. 

O vocalista firma as mãos no microfone, olha em redor, detém-se com mais atenção num dos sectores da sala e acena em tom concordante. Balbucia, com a sua voz cavernosa em provocante, “boa noite”. É o mote para a descarga de sons que desmobiliza a penumbra. As luzes entram pela retina a convulsionam a carne que se incendeia num tonitruante movimentar, os corpos vizinhos encaixando-se uns nos outros, tocando-se à medida que se entregam a uma coreografia coletiva e desorganizada. O suor tomou conta da pele, extasiada pelo frémito sonoro.

O olhar intimidante do vocalista entre duas músicas é aplaudido, como um sinal de devoção. As pessoas precisam de refúgios. A música é um refúgio. Quando é tocada ao vivo torna-se um sortilégio. As pessoas que coincidem na sala de espetáculos podem não se conhecer. Naqueles noventa minutos é como se fossem conhecidas de longa data, uma família que partilha as estrofes entoadas ora em registo confessional, a voz cavernosa a entrar na medula de quem a ouve, ora num registo histriónico que acompanha o esvoaçar da energia descarregada pelos instrumentos, com uma percussão dupla a sublinhar o entorno sonoro. 

No fim do concerto, a roda mantém-se viva. É difícil adormecer sob o efeito telúrico. À roda, a vida não se entontece com o ludismo da música. As pessoas muito sérias, que não têm vida fora do ambiente taciturno em que vivem, darão nota da sua censura (que dirão ser social): os melómanos são peritos numa auto-anestesia que é um disfarce do mundo real (é assim que lhe chamam, possivelmente em contraste com o mundo fingido). 

Os melómanos não acusam o libelo: a sua roda está viva quando entram na roda viva das artes. Para eles, fora das artes (o que poderiam chamar “desartes”) é monótono, castrador da criatividade, uma deriva para se apoderar da autonomia de cada um. Deixam a pose de estadista para os devedores das solenidades e não lhes conferem importância. Em nome da liberdade.

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