1.10.24

A descer vertiginosamente de bicicleta, o rosto a tirar a bissetriz do chão

Portishead, “Magic Doors” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=dwkf6qJUIxo

Sem capacete: roubou uma bicicleta, desleixadamente deixada ao deus-dará pelo dono, e pedalou com toda a velocidade até à descida alcantilada a caminho do rio, não fosse o dono no seu encalço e ele precisava da bicicleta para o ato que espontaneamente encenou. 

Só podia ser sem capacete: não tem por hábito andar de bicicleta e o ato de tomar ilegítima posse de uma bicicleta alheia foi espontâneo. Não se intimidou. Com ou sem capacete, andava para experimentar a descida íngreme que ia ter ao rio. Não lhe chamassem louco – apenas queria experimentar a sensação de não ter de pedalar para chegar a uma velocidade estonteante e saber que o seu corpo era o para-choques doloroso se a aventura tivesse um mau fim.

Até estava convencido que o mau fim era o mais provável. Todos os dias havia acidentes naquela pendente; ainda por cima, o piso era escorregadio, inexplicavelmente escorregadio (as pessoas habituaram-se a acusar o piso de ser de manteiga), e as autoridades não queriam saber, jogavam um jogo do empurra, cada uma (governo, região e município) com destreza a mostrar como se endossa a culpa para o outro. Nem a noção que a aventura podia ter um mau fim o desmotivou. Isso poderia parecer, aos olhos dos outros, um lancinante ato de desinteresse pela vida: quem escapa com ela ao chocar de frente contra um veículo a mais de sessenta quilómetros por hora e sem capacete?

Continuou resoluto. Nunca fora a sua marca de água, a falta de hesitações. Mas agora ia ser, nem que fosse a última coisa que a sua vida testemunhava. Dobrou a esquina e parou de pedalar com toda a força que tinha; não parou totalmente, manteve alguma cadência nos pedais ao começar a descida para que a força de gravidade o levasse a caminho do precipício a uma velocidade invejável para o melhor dos suicidas.

A hora era de ponta. Um longo cortejo de carros e motoretas descia vagarosamente a avenida. Ia ultrapassá-los a todos. Ia passar por eles com rasantes que amedrontassem os condutores distraídos. As pessoas iriam perguntar o que faria tamanho louco a descer vertiginosamente a avenida a caminho do rio. O lugar-comum que povoa as pessoas comuns ajudaria a concluírem que ele era suicida. Não se sabe se seria o primeiro. Pouco interessava: por mais que um mau fim fosse a hipótese mais provável, não descia alucinantemente a avenida com o propósito de ser ele próprio a extinguir a vida. Tinha a certeza, pondo lado as congénitas tergiversações, que ia conseguir sair com vida e sem muitos arranhões. 

O resto não importava, só o ar frio que se esmagava contra o rosto, os cabelos já de si desarranjados a penderem para o lado que o vento quisesse, um rumor de estupefação ao vê-lo, temerário, a caminhar na direção da morte quase certa, os carros mais lentos a serem ultrapassados com rasantes circenses, numa mostra de equilíbrio que nunca fora seu apanágio, o corpo aerodinamicamente colocado para ganhar ainda mais velocidade (como se aquela já não chegasse), a vertigem de ver o rio aproximar-se na exata medida do ganho de velocidade com a bênção da descida inclinada; e as imagens correspondendo à sua vida passada que iam desfilando em excertos velozes, embaciando o olhar. 

O resto não importava. A vida continuava a ser bela.

Sem comentários: